Inconstantes: Desemprego e outras heresias, de Bruno Inácio.
"Um cigarro dura menos do que uma estrela", afirma o narrador Fábio ao tentar lembrar a quem pertencia esse verso. Ricardo Chacal, Arnaldo Antunes, Roberto Piva? Ou quem sabe consequência de uma confusão mental ao se deparar com o remédio Prozac. Inquieto, seus passos são como "percorrer pequenas distâncias a pé", mas sempre interrompendo algo. Ou talvez buscar.
Fábio é personagem do romance "Desemprego e outras heresias" (Editora Sabiá Livros/2022) de Bruno Inácio, jornalista e colaborador do Jornal Rascunho.
Entre uma cidade não exposta — ao mesmo tempo críptica — no Estado de São Paulo e a capital onde ninguém dorme, uma aparição é constante na vida do protagonista: Um Jesus crucificado. Ao se espelhar no filho de quem o concebeu, um grito, uma buzina, um som estridente ecoa, sendo "puxado para dentro de mim". Como faca.
O filho Fábio é atravessado por uma projeção materna da culpa, para não dizer cristã. Uma mãe religiosa fanática; um irmão a proclamar sobre sua vinda ao mundo como infelicidade da casa. O diabo inscrito em cada parede dos ambientes e nos livros proibidos (120 dias de Sodoma e Douglas Adams), além do fardo do desemprego, fenômeno que dá título ao livro.
Culpa, solidão, violência familiar e marginalização social são os componentes dessa estrutura.
A tragédia não é novidade na literatura brasileira, especialmente desde o "boom" dessa substância no país, segundo o escritor Schollhammer.
Uma violência espetacularizada, irracionalismo crônico ou maior atenção aos seus desdobramentos nas cidades para com seus habitantes. Com linguagem coloquial e direta, o jornalista entra em diálogo com autores de densa trajetória, a exemplo de Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. O primeiro em especial, com seu aclamado "Uma vela para Dario", composição na qual lirismo e denúncia se expandem.
No que diz respeito aos recursos utilizados, Bruno se vale de frases curtas, anunciações de objetos (tudo para o personagem é uma maldita lista a ser concluída) e fragmentações temporais, induzindo uma sensação de questionamento a que tempo pertencem as personagens, em quais direcionamentos se confirmam o nível de estabilidade mental de Fábio, ou "falsa ilusão da realidade". O retorno ao passado exige uma dose maior de Prozac.
O realismo retratado no romance é alçado tanto pela genitora Ivone quanto no irmão e pai, o último perpetuador de violência doméstica, além de inserir no filho "provocado pela vingança do Diabo" mais e mais culpa.
Ao fim, a leitura se encaminha para duas seções: "Anotações sobre Fábio" e "Epílogo", sendo a primeira constituída por títulos epistolares, datas de diversos períodos, se iniciando nos anos 80. Elas são escritas por sua mãe e seu segredar é denunciado. Afinal, o que Fábio tanto carrega na herança e na visão de sua própria doação aos demais?
Tornando as ferramentas mais diversificadas, a composição textual também denota uma certa narrativa poética, como bem afirma a prefacista Georgina Martins no livro. "Pequenas listas poéticas". Esse tipo de escrita é costurado a partir de dissolução da poesia na prosa, cuja ferramenta (prosa poética) está sob disposição em variados gêneros literários. Romances, contos, novelas e peças de teatro.
"Desemprego e outras heresias" é uma névoa de incertezas juntada a uma janela de uma silhueta abandonada pela crueza do capitalismo, modo de produção fincado na projeção deliberada de sentimentos repressores, tornando o indivíduo o próprio solipsismo. Fábio é um dos tantos cidadãos que ao se ver invadido por débitos quase que de uma tragédia romana, busca um sentido na vida que aos poucos vai se abrindo como a caixa de Pandora.