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domingo, 4 de junho de 2023

Memórias Gaia

"Andava eu, ontem, ali para os lados da Ribeira, quando dei de caras com umas lindas cachopas de Villa Nova que, alegres e sem medo das bombas, caminhavam descalças e de cesto à cabeça, vendendo belos pêssegos e apetitosos morangos colhidos em Canidelo e na Madalena. 
Lançavam elas altos pregões como quem canta, encantando velhos e moços e, ao mesmo tempo, iam abespinhando as velhas vendedeiras, que desdenhando a fazenda e a graciosidade das moçoilas, soltavam no ar impropérios maliciosos, assaz pouco cristãos… 
Eu é que não resisti à mercadoria!
- Ai quem me acaba o reeeeesto! Ai quem me acaba o reeeeesto!  Quem quere pêssagos? Som tão ducinhos…
- Ó menina, são dos carecas?
- E que tem isso? Som carecos, ó pois som! Quere vomecê dos piludos? Som pêssagos de maio, sinhore suldado! É p'ra lebare? Inté lhe dou uma receita p'rós cumere e chorare pur mais!

E ali ficamos conversando, entre os olhares de esguelha cruzados entre vizinhas pelas esquinas…
Há algo diferente no ar! 
Apesar dos constantes ataques vindos dos altos de Villa Nova, a cidade está agora envolta numa alegria crescente. 
Mas sofre-se ainda muito, como na terrível noite de 24 de maio, em que os patifes nos regalaram com balas e bombas desde as 3 até às 7 horas da manhã, infligindo-nos as agruras do canhão Paixhans; valha-nos que as nossas baterias conseguiram fazer calar as inimigas! 
O mais vai-se arranjando, mas não podemos esmorecer.

Contaram-me que, há dias, esteve em Gaia um sujeito a quem chamam o «General Careca», da artilharia miguelista, o qual, tendo olhado de frente para o dito canhão, fizera biquinho, e dissera:
- Desgraçado Porto, nunca eu te visse, para não ter saudades da tua memória! Já estás por terra: uma dúzia de tiros, lá vai tudo, como baralho de cartas de jogar em mão de criancinha…
E, pelos vistos, disse isto com o ar pedante de trolha caiador que era, quando foi preso para soldado, andando ele a trabalhar nas obras das Cadeias da Relação do Porto, em 1828…  
A verdade é que, assim que os soldados e os paisanos o ouviram, ficaram aterrados e largaram armas e ferramentas. 
Ficou tudo em silêncio por um minuto e, no fim, um deles, com alma de comiserativo fiel, tirou o chapéu, levantou os olhos ao céu, e disse em voz de meia surdina:
- Um Padre Nosso e uma Avé Maria por alma desses desgraçados que estão encurralados no Porto!

Todos tiraram o chapéu, e começaram a rezar com a mais pesarosa devoção, pintando já, talvez na fantasia, todo o povo desta cidade lançado por terra, sem alento e sem vida! 
Mas, parece que os feitiços se estão a virar contra os feiticeiros! 
A rezar, que o façam por eles próprios, que bem precisados estão, pois têm posto em apuros o povo de Villa Nova, já que muitos são os villa-novenses mandados sair para a retaguarda das linhas e, logo que deixam as suas casas, lançam os corcundas mão a tudo o que possa valer 5 réis…  
Os malandros gabam-se de ultrajar as pobres mulheres de Villa Nova e já fazem aos lavradores a terceira requisição de pão!
A verdade é que falta a disciplina e a subordinação no exército do inimigo que guarnece a margem esquerda do Douro.
Contam-se coisas horríveis acerca da maneira como se tratam os doentes e os feridos: não têm os miguelistas nem número suficiente de cirurgiões, nem medicamentos necessários para os hospitais. 
Estão quase ao abandono para os lados de Grijó! 
Os paisanos atestam que muitas vezes os feridos de gravidade são atirados para o carro dos mortos, para serem sepultados com os cadáveres! 
Nesta guerra civil sucedem-se certas coisas que será melhor calar...

Mas voltemos às coisas boas: soube que há quatro dias atrás, a 30 de maio, ao final de uma tarde bem quente, o Senhor D. Pedro recebeu ofícios de Londres a dar conta da saída de 2500 soldados armados em seis vapores, compondo uma expedição, de que faz parte o Almirante Napier, o qual vai, certamente, substituir o casmurro do Sartorius. 
Tudo graças aos esforços do nosso Marquês de Palmela! 
O homem não é tão mau como o pintam, afinal! 
Chegaram todos cá anteontem, 1º de junho, e agora vamos a obrar! 
Esta alegre notícia, reunida à saúde de S.M.I. e à abundância de víveres, traz esta cidade na maior alegria e esperança!

Acusando remoques, consta-se que D. Miguel, inchado de soberba e pedantismo, escrevera ao Conde de S. Lourenço – um orgulhoso imbecil –, que pouco lhe importa perder 1 das 22 cidades que tem! 
Não minta tanto, Senhor, nem beba tanto azeite de nabo…
Andam por aqui muitos espias, que tudo levam ao conhecimento das autoridades miguelistas. 
E os negócios entre Villa Nova e o Porto continuam a fluir como a água do Douro…. 
Pois não é que até o pano e os galões para os magníficos uniformes dos lanceiros miguelistas foram fornecidos por comerciantes desta Praça? 
Negócio é negócio… 
Venham de lá pêssegos e morangos!

Por falar nisso, contou-me a Amelita – nome da cachopa que me vendeu os pêssegos e de graça me deu a receita –, que na passada terça-feira, dia 28 de maio, deu à costa na Praia da Madalena, uma lancha com um major francês e a mulher deste, assim como dois ingleses, que fugiram do Exército Libertador, tendo ali desembarcado, e indo depois ao encontro das autoridades de D. Miguel. 
Sorte macaca os há de aguardar…
Mas vamos às coisas doces, que quero aqui registar a receita que a Amelita trigueira me contou, com ares de louçã candura:

PÊSSEGOS COM VINHO DO PORTO PERFUMADO
Descascam-se e tiram-se os caroços a alguns pêssegos bem maduros. 
Cortam-se em fatias bem delgadas, dispondo-as em prato fundo. 
Polvilham-se com bastante açúcar amarelo, uma pitada de canela, uma estrelinha de anis e algumas folhas de boa hortelã. 
Depois rega-se tudo com uma conchinha (das grandes…) de Vinho do Porto branco, deixando ficar em infusão por 4 a 5 horas, em local muito fresco e abrigado da luz. 
Depois é só comer e, no final, beber a calda e lamber os beiços!

E a Amelita ainda me avisou, enquanto me passava os pêssegos para o bornal:
- E num deite fora as cascas, home! Cum auga-ardente e assucre, inda pode fazer um licor de truz! Aprobeiti-as!

Pois é mesmo… e lá foi a pequena embora, com o gigo vazio e a cantar:
- Minha mãe casai-me cedo, incanto sou rapariga; o milho ceifado tarde, num dá palha, nem espiga!
E digo de lá para comigo, em tom consolador:  «Quem promete dar no olho e dá na sobrancelha, nem por isso é mau caçador!». 
Assim prega lá na Lapa, sem folheto, o nosso Capelão Padre Vaz Preto…

João Pataco, soldado liberal"

Fontes e bibliografia:
ARQUIVO MUNICIPAL SOPHIA DE MELLO BREYNER. Gaia. Desenho de Cesário Augusto Pinto. 1848 (Id298705).
ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO. Documentação sobre o Cerco do Porto.
CRÓNICA CONSTITUCIONAL DO PORTO. Volume II. Porto: Imprensa do Gandra & Filhos, 1833.
LIMA, Fernando de Castro Pires de – Cantares do Minho. Porto: Portucalense Editora, 1942.
LIMA, Henrique de Campos Ferreira – Legião Polaca ou Legião da Rainha Dona Maria Segunda (1832-1833). Vila Nova de Famalicão: Tipografia Minerva, 1932.
O CERCO DO PORTO EM 1832 PARA 1833 – POR UM PORTUENSE.  Porto: Tipografia de Faria & Silva, 1840.
OWEN, Hugo – O Cerco do Porto contado por uma testemunha. 2ª edição. Porto: Renascença Portuguesa, 1920.
PIMENTEL, Alberto – As alegres canções do Norte. Lisboa: Livraria Viúva Tavares Cardoso, 1905.
SORIANO, Simão José Luz – História do Cerco do Porto. Volume I e II. Porto: A. Leite Guimarães Editores, 1889.
WANKE, Eno Teodoro – A trova popular : (folclore da quadra setessilábica, sua descoberta, história e penetração nos povos de línguas ibéricas). Rio de Janeiro: Editora Pongetti, 1974.

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