Há uma década atrás não havia alentejano que não soubesse separar o trigo do joio, notando e enunciando as particularidades que diferenciam o Cante dos outros cantares do Alentejo.
Mesmo o mais duros de ouvido ou distraídos não confundiam o "cantar a vozes" com as Janeiras, Reis, Menino ou a Oração das Almas. Os cantos dos mastros, das inspeções, do Entrudo ou os cantares dos bailes não eram metidos no mesmo saco dos outros praticados em coro, com ponto, alto e baixos, habitualmente designados por Cante, onde também não cabiam os cantares de improviso como o Despique, Baldão ou a Desgarrada.
Todas estas manifestações vocais populares conviviam pacífica e informalmente nos ambientes sócio-culturais que tínhamos, mas pouco a pouco – e uma a uma – foram perecendo, com exceção do dito Cante, talvez porque este, há cerca de um século, começou a ser praticado não só de modo aberto, mas também de forma organizada em grupos, corais ou ranchos, variando a designação com a área geográfica onde se situavam.
De facto, o Cante nunca foi uma prática vocal exclusiva no Alentejo.
Efetivamente tínhamos mais, mas infelizmente perderam-se com o rodar do tempo, tendo acontecido pela certa o mesmo ao Cante, se não fora o surgimento dos grupos corais que o conservaram até ao presente, como prática vocal polifónica (ponto, alto e baixos) e a capela (sem acompanhamento de instrumentos musicais).
Na pesquisa que fiz a este propósito no concelho de Castro Verde, falando com os mais velhos que tinham aprendido a cantar com outros mais velhos ainda, nenhum tinha a mínima referência à existência de qualquer sonoridade instrumental associada ao Cante.
Aliás, na região do Campo Branco a tradição de instrumentos musicais é muito pobre. Só me falaram (em 1969) da existência de adufes em tempos antigos na povoação de Geraldos (Castro Verde), que eram tocados por mulheres, no ritual da "vigília" a caminho de São Pedro das Cabeças.
Para além dos ditos adufes, só demos conta da existência de uma viola campaniça decorativa (e que nunca deve ter tocado) no espólio de um prédio em Castro Verde, onde no concelho também encontrei, em Ourique-Gare (no final da Década de 80), o tocador Francisco António (natural de Aldeia Nova – Ourique) e que foi a pedra basilar para o ressurgimento da campaniça com a pujança que hoje tem.
Mas voltando ao Cante propriamente dito, não podemos deixar de realçar a sua inscrição na lista representativa do Património Cultural Imaterial (PCI) da Humanidade pela UNESCO, a 26 de novembro de 2014, de cujo processo de candidatura consta uma definição clara, exata e comummente aceite daquilo que era objeto de classificação.
Por isso, não se pode agora, sob qualquer pretexto, forçar uma redefinição daquilo que sempre foi o Cante, fazendo-se uma interpretação extensiva do conceito para passar a incluir, o que sempre esteve de fora.
A este respeito penso:
– Que o Cante tem uma essência, uma história e raízes profundas na alma Alentejana que não podemos deixar apagar;
– Que a salvaguarda do Cante não passa pela sua metamorfose, transformando-o naquilo que nunca foi para agradar a audiências;
– Que um património do Alentejo e da Humanidade merece, finalmente, uma especial atenção por parte dos poderes central e local para que em cada concelho, juntamente com os seus grupos corais sejam constituídos grupos de trabalho que tratem da elaboração e implementação dos respectivos planos de salvaguarda.
Quanto à teoria evolucionista do Cante, que pretende defendê-lo negando a sua essência, de modo a ganhar novos públicos e participantes, considero-a uma argumentação interesseira e que mais não visa do que cavalgar o protagonismo que a classificação da UNESCO lhe deu.
Para se salvaguardar o Cante é preciso dar mais atenção, ter consideração e reconhecimento, promover apoios e dar meios aos grupos corais para que desenvolvam o seu trabalho cultural de primeira linha.
Paralelamente, os artistas que tanto apreciam o Cante Alentejano devem continuar a fazer os seus trabalhos nele inspirados, mas sempre sem deixarem de sublinhar que a sua arte teve inspiração numa prática que é PCI da Humanidade, mas que não é Cante.
Assim, pacificamente iremos todos, concerteza, conviver sem o peso na consciência de nada se ter feito para dar mais vida ao Cante Alentejano ou de se ter contribuído para abreviar a sua morte.