Nos 50 anos do Golpe de Estado, que derrubou o governo democraticamente eleito de Salvador Allende, o Chile continua a ser um país sequestrado pela memória do golpe e da ditadura.
Há 50 anos, o governo legítimo e democraticamente eleito de Salvador Allende era violentamente derrubado, a 11 de Setembro de 1973, no Chile, num Golpe de Estado conduzido pelo general Augusto Pinochet, com o apoio dos Estados Unidos. Num evento esta semana, a filha do presidente assassinado pelas tropas de Pinochet, a escritora Isabel Allende, dizia que o Chile assiste hoje um processo de "negacionismo histórico" como não se via há décadas.
"Quando deveríamos ter amadurecido como sociedade, encontramo-nos com o negacionismo, com distorções, com frases que nunca tinha ouvido, repito, nem nos 30 nem nos 40 anos, isto é, considerar Pinochet actualmente um estadista, ou apontar que (...) Pinochet existiu porque Salvador Allende existiu. Acredito que é uma ofensa que não merecemos, esta sociedade, o nosso país, e, certamente, em especial os familiares e as vítimas", disse a escritora e também senadora chilena.
É chocante assistir à relativização histórica de uma figura como Augusto Pinochet, à equiparação do governo de Allende com a ditadura de Pinochet, à teoria dos "dois males" que muito tem vingado nestes tempos (cá pela Europa também), em circuitos mais liberais, sobretudo nas direitas herdeiras da Escola de Chicago, responsável directa, junto da CIA e de inúmeros aliados internacionais (como documentos recentemente desclassificados pelo Reino Unido e EUA revelam), pela ditadura chilena entre 1973 e 1990. É chocante, mas não surpreendente.
A revista Americas Quarterly concluiu, perante os resultados do Barómetro do CERC-MORI (2023) sobre o inquérito alargado na sociedade chilena sobre o golpe de 1973, que o Chile "parece estar a testemunhar o colapso do seu sistema partidário, o questionamento do seu sistema económico e, se acreditarmos nas sondagens, um compromisso vacilante com a democracia".
Segundo o CERC-MORI, nos últimos 18 anos, os chilenos que acreditavam que Pinochet salvou o Chile do marxismo variava entre os 19 e os 24%. Este ano, saltou para os 36%. Entre 2013, cerca de 16% pensava que os militares tinham tido razão na execução do golpe. Em 2023, esse número subiu para 36%. É bastante impressionante ver a evolução dos dados de 2013 e de 2023. Dez anos depois, o Barómetro conclui: "A opinião branda em relação ao regime do general Pinochet regista-se muito elevada com 40% entre os jovens com menos de 35 anos, enquanto aqueles que viveram o regime chegam aos 51% que pensam que foi 'em parte bom e em parte mau', ou seja, 11 pontos percentuais mais [do que em 2013]."
Diante da rejeição do projecto da nova Constituição no ano passado, e que será novamente votada este Novembro, o Chile parece continuar sequestrado pela memória de um golpe, e de 17 anos de uma ditadura, que não se descolou da realidade que o país continua a viver, na permanência das estruturas constitucionais, governativas, judiciais e económicas que, entre 1990 e hoje, se mantiveram quase intactas. Em Março de 1990, o Chile tornou-se num "regime democrático" por decreto: não houve nenhuma ruptura do status quo. Apesar de o lema que se ouve por estes dias ser "Allende vive", há um fantasma que vive também, que é o de Augusto Pinochet.
Como dizia a investigadora Sofia Lisboa no AbrilAbril, "com a Constituição de Pinochet ainda em vigor e com as direitas a liderar o processo de revisão constitucional ansiado por muitos, a desilusão e frustração reinam. O que está em causa no Chile continua a ser a forma como se compreende o passado, como se mobiliza e se constrói a unidade em torno do que dele se pode retirar, como se trava a sua 'higienização' e equiparação (e rejeição) de dois períodos incomparáveis – o de Allende e o de Pinochet –, para organizar um futuro que responda às necessidades da maioria".
Não há dúvida que esta é uma questão de relação de forças no espaço público, do poder da narração da história dos vencedores, do enfraquecimento da memória da luta colectiva diante da colecta mediatizada de "testemunhos" isolados e individuais, e a desarticulação da leitura e aprendizagem sobre um processo como foi a ditadura chilena – "reduzida", assim, a um golpe – de um vasto e sistemático programa de extermínio ideológico. Não é só no Chile que estas "guerras de memória" estão a acontecer: em grande parte da América Latina, mas em Portugal ou na Europa de Leste também.
Não surpreende que assim seja quando assistimos, como a efeméride esta semana nos proporcionou, à "higienização" de uma das ditaduras mais violentas do século XX reduzida ao "crescimento económico" ou ao "aumento do PIB" durante os gloriosos anos 80, indicadores que, à esquerda e à direita, nos continuam a impingir também diária e mediaticamente, como se os "indicadores" e os "brilharetes" pusessem comida na mesa, nos dessem trabalho com direitos ou tecto sobre a cama onde dormem os nossos filhos.
Como escreveu o historiador marxista Eric Hobsbawm, a 20 de Setembro de 1973 na New Society, "antes do Golpe, jovens reaccionários pintaram 'Jacarta' nas paredes de Santiago; e agora os militares chilenos estão a contar aos telespectadores o sucesso que a Indonésia tem tido na atracção de capital estrangeiro desde então. Não haverá problemas para atrair capital estrangeiro. Ninguém saberá quantos chilenos serão vítimas da vingança da sua própria classe média, uma vez que a maioria das vítimas será o tipo de chilenos dos quais ninguém nunca ouviu falar."
O "milagre económico" chileno foi a perseguição sistemática e a eliminação violenta, por meio de prisão em campos de concentração, tortura, abusos, violação e assassinatos de milhares de pessoas de esquerda – e porque eram de esquerda: de comunistas, de socialistas, de democratas, de pessoas organizadas politicamente mas também cidadãos comuns, em associações, em organizações não-governamentais, assistentes sociais, professores, médicos de saúde pública, estudantes, intelectuais e trabalhadores, todos aqueles que por proximidade ou afinidade se tinham juntado (ou bastava a ditadura suspeitar de) à Unidad Popular no governo de Allende, entre 1970 e 1973. Mais de 3 mil desapareceram ou morreram. Mais de 40 mil foram vítimas da ditadura. Mais de 200 mil foram forçados ao exílio.
O "milagre económico" chileno é a lente partida dos óculos de Allende com que hoje, iconicamente, se percepciona mas também se "celebra" o golpe. "Celebra" está entre aspas, claro, porque da mesma forma que a CNN Portugal disse que o 11 de Setembro de 1973 foi uma "revolução", também muitos (aparentes) democratas continuam a "celebrar" 1973 como um "mal necessário".
Até porque 11 de Setembro de 1973 foi o embrião de muitos golpes futuros, nas Américas e no mundo, modelo de métodos de eliminação e aniquilação do "inimigo", da cultura do medo e da paranóia, não só como manual de tortura da CIA posto em prática num enorme laboratório social, mas acima de tudo, e às claras, da simbiose perfeita entre fascismo e neoliberalismo, o modelo económico (ultra)capitalista de destruição de todas as dimensões do tecido social do Estado e da sua soberania económica.
Como cantava Victor Jara, fuzilado apenas cinco dias depois do golpe de Pinochet, e cujos carrascos a justiça chilena condenou, 50 anos demasiado tarde (isto é, no mês passado), a cumprir pena de prisão: "é o canto universal/que há-de triunfar", mas no Chile, "o direito de viver em paz" ainda não triunfou.