Quando me predispus a escrever esta meia dúzia de crónicas, num exercício de recuperação de memória de um Portugal de há cinquenta anos, longe estava de pensar que esta, referente ao último Natal em ditadura, seria escrita em plena selva tropical do Sri Lanka, país a que Camões chamou de Trapobana, mas que poucos saberiam identificar no mapa quando leram Os Lusíadas.
Regressemos pois a Lisboa e a dezembro de 1973. Estamos em plena época natalícia. As iluminações de Natal já foram inauguradas, levando ricos e pobres à Baixa. Os ricos para comprar nas lojas da moda, os pobres para lhe cobiçar as montras e sonhar!
O facto de podermos caminhar juntos nesta ribalta de cor e de luz concede-nos alguma noção de igualdade. Mas na verdade nunca o foi… nem nunca assim será!
Daqui a uns meses iremos festejar um "Natal" de verdade. Assistiremos ao nascimento de uma menina. Uma menina a quem será dado o nome de LIBERDADE. E aí sim! Celebraremos em igualdade essa explosão de grilhetas que nos pesam nos pulsos, tornozelos e alma, vai para 48 anos.
E então… sonharemos!
Por agora, voltemos à guerra do tão desejado bacalhau para a ceia de Natal que os merceeiros guardam debaixo da bancada apenas para os clientes habituais ou os endinheirados.
Por agora, voltemos à guerra do tão desejado bacalhau para a ceia de Natal que os merceeiros guardam debaixo da bancada apenas para os clientes habituais ou os endinheirados.
Garantir um pedaço dessa iguaria vinda lá dos mares do Norte era tarefa para meter cunhas ou pedir favores. O governo afiançava haver gastado em importações do desejado peixe o suficiente para toda a população. No entanto, este dificilmente chegava à mesa dos pobres.
Na televisão a preto e branco (tal como a vida de então!), passavam as deprimentes mensagens de boas festas dos soldados em guerra nas províncias ultramarinas. Discursos rápidos, atabalhoados e em diversas pronúncias que lhes denunciavam a proveniência. Eu, aborrecido, entretinha-me a decorar números mecanográficos e a contabilizar os que não conseguiam dizer a palavra "prosperidades" quando se referiam ao ano novo que aí vinha.
Na verdade… eu não gostava do Natal!
Se a vida era em geral cinzenta, nesta época enegrecia. Só queria que o 26 amanhecesse para o pôr para trás das costas.
Caso não me calhasse, pedia para trocar o turno, pois preferia trabalhar na consoada a ficar em família, local esse onde a fartura e o amor nunca abundaram.
A cidade por esta altura ficava deserta. Muitos faziam-se ao caminho para passar a quadra nas suas vilas e aldeias, lá no aconchego do madeiro no lume. Na capital, na noite da consoada, a vida parava. Cinemas, teatros, bares, restaurantes e comércio em geral fechavam portas. Apenas um ocasional transporte público ou um carro de praça em busca do derradeiro cliente subsistiam.
Pela minha parte, e porque também o hotel onde trabalhava estava praticamente vazio, partilhava com os amigos desirmanados a ceia que me era deixada. Havia sempre alguém que trazia uma ou outra garrafa e assim, entre umas garfadas no bacalhau e uns goles de vinho, se fazia a contagem das horas de mais um deprimente Natal.
Não foi nesse ano de 73, mas sim anos mais tarde – sempre dentro do mesmo espírito de guerrilha natalícia – que, aproveitando a presença do primeiro jogador estrangeiro chegado ao Benfica – César, de seu nome –, passámos a consoada a jogar à bola no parque de estacionamento num desafio de quatro para quatro. Isto para dizer que poucos se poderão dar ao luxo de ter passado o Natal a jogar futebol com um craque do Benfica.
Depois os tempos e a vida mudaram! E de antagonista natalício passei a acérrimo militante da quadra. Nas últimas décadas tenho-me dedicado a juntar a família à volta da mesa e do lume. Tenho-me visto envelhecer, enquanto outros que nos acompanharam se vão aos poucos da lei da vida libertando.
Termino esta crónica entre a selva tropical do centro do país e os solavancos de um ruidoso comboio, com destino a mais uma descoberta, desta feita ao coração das plantações de chá, desejando a quem me lê um Natal farto de comida e amor, que por mim, já conto os dias para atear o madeiro que apartei há cerca de um ano.
Boas Festas!
Napoleão Mira