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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Opinião




As condições do urgente diálogo inter-religioso

Anselmo Borges

Diário de Notícias 27 de janeiro de 2024

 

Tanta gente que foi morta ao longo dos séculos, vítima do ódio e de interesses económicos, políticos, geoestratégicos, imperativos de monopólio religioso, e em nome de Deus!... Haverá coisa mais abjecta e absurda? É evidente que o deus em nome do qual arbitrariamente se torturou, se assassinou, se vandalizou, não existe. Não passa de um ídolo execrável, que serviu de legitimação a interesses brutais, sujos, selváticos. Escusado será dizer que esse deus idolátrico produz, e tem de produzir inevitavelmente, ateísmo. Matar, mandar matar está nos antípodas do santo nome do Deus vivo.

E hoje essa tragédia continua. E porque entre nós não se fala disso, quero (entre parêntesis) apresentar alguns números sobre a perseguição dos cristãos, sabendo-se que o cristianismo é hoje a religião mais perseguida no mundo. Não é a única, evidentemente - pense-se, por exemplo, nos rohinga, adeptos da religião muçulmana, e na sua perseguição brutal em Myanmar, país maioritariamente budista. Segundo a ONG Puertas Abiertas, no seu relatório de 2024 referente à perseguição dos cristãos, acabado de ser publicado, entre 1 de Outubro de 2022 e 30 de Setembro de 2023, 14 766 lugares de culto foram destruídos ou encerrados e 4998 cristãos foram assassinados.

Um em cada 7 cristãos é perseguido no mundo - um em cada 5 na África, 2 em cada 5 na Ásia, um em cada 16 na América Latina. A Coreia do Norte voltou a encabeçar o ranking negativo de perseguição mais severa, seguindo-se Somália, Líbia, Eritreia, Iémen, Nigéria, Paquistão, Sudão, Irão e Afeganistão, ocupando Índia e China os lugares 11.º e 19.º, respectivamente. Segundo o Relatório, são 57 os países onde os cristãos enfrentam uma perseguição severa...

Voltando à temática das religiões, constatamos que a corrupção do óptimo é péssima. A religião, que é, pode e deve ser a pátria da expansão infinita do ser humano, da libertação, da dignidade e dignificação de todos, do amor, da alegria, da paz, do sentido último, também foi, é e pode tornar-se o espaço da loucura toda, à solta. Na religião, houve e há o melhor e o pior: nela, aconteceu e acontece a subida ao céu do humano heróico até ao divino; nela, desceu-se até ao inferno da desumanidade diabólica. Neste início ainda do século XXI, com a confusão e o medo instalados, reflectir sobre esta realidade é imprescindível.

O que durante tanto tempo Hans Küng, recentemente falecido, sublinhou - a necessidade do diálogo inter-religioso para ser possível a paz no mundo - é cada vez mais urgente. Entende-se mais claramente do que nunca que a obra do famoso teólogo se oriente pelo lema: "Não haverá paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não haverá paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões.

Não haverá diálogo entre as religiões sem critérios éticos globais. Não haverá sobrevivência do nosso globo sem um ethos global, um ethos mundial."

Este diálogo assenta em quatro pilares fundamentais. Primeiro: todas as religiões, desde que não só não se oponham ao Humanum, mas, pelo contrário, o afirmem e promovam, são reveladas e verdadeiras. Segundo: as religiões são manifestações e encarnações da relação de Deus com o Homem e do Homem com Deus. Todas são relativas, no duplo sentido de relativo, dito já no étimo latino: relativas, na medida em que estão inevitavelmente inseridas num determinado contexto histórico-social, e relativas, no sentido de que estão referidas, isto é, em relação com o Absoluto, mas elas próprias não são o Absoluto. Precisamente este segundo pilar exige o terceiro: se não são o Absoluto, embora referidas a ele, então os homens e mulheres religiosos devem dialogar para melhor se aproximarem desse Mistério divino já presente em cada religião, mas sempre transcendente a cada uma e a todas.

Não se trata, portanto, de mera tolerância religiosa, que pressupõe ainda uma superioridade de quem tolera o outro considerado inferior. É o próprio Mistério infinito de Deus que exige o diálogo para que os crentes se enriqueçam mutuamente num sempre a caminho do Mistério que se revela e ao mesmo tempo se oculta, e do qual o ser humano não pode apoderar-se, nem dominar. Deste diálogo fazem parte os ateus, pois são eles que permanentemente previnem os crentes contra a idolatria e a desumanidade. Finalmente - é o quarto pilar -, se Deus é o Mistério que tudo penetra e a todos envolve, então o respeito pelo outro crente, pelo outro homem, por todas as criaturas, não é algo de acrescentado à fé religiosa, mas exigido pelo próprio dinamismo dessa fé. Acreditar em Deus implica, em si mesmo, acreditar no ser humano, em todo o ser humano.

E uma última observação, essencial. Não haverá paz entre as religiões e com as religiões, sem dois pressupostos fundamentais, e, aqui, peço desculpa por fazer um apelo nomeadamente ao Islão, porque aquilo que custou tanto a perceber e concretizar na, e pela, Igreja Católica, vai ser muito mais difícil para o Islão. Primeiro: condição fundamental é a leitura histórico-crítica dos textos sagrados, que não admitem de modo nenhum uma leitura literal. Segundo: a laicidade do Estado, a separação do Estado e da(s) Igreja(s), o Estado não tem nenhuma religião, para poder salvaguardar a liberdade de todos, o que não significa de modo nenhum laicismo, que seria a pretensão de remeter a religião só para o espaço privado, como se ela não tivesse lugar no espaço público.


Padre e professor de Filosofia.

 

https://www.dn.pt/8430641731/as-condicoes-do-urgente-dialogo-inter-religioso/


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SÃO TOMÁS DE AQUINO SEM FESTA

Frei Bento Domingues, O.P.

 

1. Este ano, a maior parte das paróquias não celebra a festa de S. Tomás de Aquino (1225-1274). Salvo em casos especiais, a liturgia dominical antepõe-se a qualquer outra festa. Ainda me recordo bem do tempo em que era celebrado, em todas as escolas católicas, como o grande mestre do pensamento cristão.  Não pertencia ao mundo dos repetidores, mas dos inovadores na criatividade de um Mundo Novo, como escreveu Marie-Dominique Chenu (1895-1990), um dos seus grandes e criadores discípulos e, como o seu mestre, várias vezes condenado e glorificado. O P. Chenu morreu em Saint-Jacques (Paris).

Como recordou Edward Schillebeeckx (1914-2009), ele estava praticamente cego há uma década e caminhava com dificuldade. Mas o espírito manteve-se muito vivo até ao último momento. O funeral foi celebrado na igreja de Notre-Dame de Paris. Concelebraram o cardeal Lustiger, de Paris, Damian Byrne, mestre geral da ordem dominicana, Marneffe, provincial de Paris e seis bispos.

Algumas centenas de dominicanos, vindos de toda a França e também do exterior, encheram as duas naves laterais, enquanto a central estava repleta de fiéis comovidos. Durante a celebração, foi lido um telegrama do Papa, assinado pelo cardeal Casaroli, no qual o pontífice manifestava um agradecimento por tudo o que Chenu havia feito pela Igreja.

2. Antes ainda da teologia da esperança, da teologia política, da teologia económica e dos vários ramos da teologia da libertação, o P. Chenu tinha iniciado a renovação teológica. Etienne Gilson disse uma vez: Como o padre Chenu, só existe um em cada século.

Não sabemos se admiramos mais a genialidade criativa de Chenu ou o seu coração humano e caloroso. Claude Geffré escreveu acertadamente, por ocasião da sua morte: Chenu era mestre de teologia e de humanidade.

Em 1913, Chenu entrou no convento Le Saulchoir dos dominicanos franceses, na zona de Kain (Bélgica), porque muitas ordens religiosas estavam, então, proibidas em França.

Estudou também em Roma e voltou para Kain em 1920. Cultivou o seu sentido histórico com os padres dominicanos, Mandonnet e Lemonnyer, então, decano da faculdade de Le Saulchoir, onde também ensinava o grande exegeta, o P. Lagrange.

Em 1932, foi nomeado regens studiorum, mestre dos estudos, e posteriormente reitor de duas faculdades. Pouco antes da guerra, o convento Le Saulchoir foi transferido para Etiolles, perto de Paris.

Em 1942, Chenu recebeu o primeiro golpe. O inocente e brilhante livrinho Une École de Théologie (Ed. Le Saulchoir, 1937) foi condenado por Roma. Desde então, não colocou mais os pés naquela casa.

Alguns anos depois, chegava-lhe o pedido da parte da École des Hautes Études da Sorbonne para dar uma aula semanal sobre a Idade Média. Eu mesmo frequentei as suas aulas no ano académico de 1945-1946. As suas publicações sobre a Idade Média são todas fruto dessas aulas.

Foi o próprio grande mestre medievalista Jacques Le Goff, em nome da Sorbonne, da École des Annales e dos medievalistas parisienses, que prestou homenagem ao P. Chenu durante a liturgia fúnebre.

Não resisto a citar uma frase desse seu discuso: «O Padre Chenu ensinou-me, como talvez muitos historiadores quiseram fazer sem serem capazes, a esclarecer o desenvolvimento e a actividade da teologia e do pensamento religioso na história, situando-os no centro da história universal, onde, sem depender dele, podem colocar-se entre a história económica e a história social, a história das ideias e a história eclesiástica em todas as suas dimensões materiais e espirituais». O não crente Le Goff foi o único aplaudido calorosamente na igreja de Notre-Dame. Todos os presentes o ouviam: a homenagem póstuma ao grande mestre Chenu era mais do que merecida. Le Goff concluiu, dizendo: «Adeus, padre. Obrigado por aquilo que o senhor foi, por aquilo que disse, por aquilo que escreveu, por aquilo que fez. Mas o senhor continua, em espírito e nos nossos corações, connosco, porque nós sempre precisaremos de si».

3. Não devemos esquecer que o P. Chenu era tudo menos um estudioso estranho ao mundo. Era também o grande animador dos padres-operários franceses. Por isso, foi exilado de Paris, em 1954, por causa de uma intervenção do Vaticano. Uma história dolorosa que foi avaliada e analisada nos mínimos detalhes no recente estudo do PFrançois Leprieur O.P.Quand Rome condamne. Dominicains et prêtres-ouvriers (Paris, 1989).

Chenu não praticava uma teologia especulativa. Era teólogo com base nos factos, nos eventos, nos movimentos quer do passado quer da actualidade. Era um pesquisador, sempre em busca, como nenhum outro, dos sinais dos tempos[1].

Por isso, a sua teologia era muito vivaz e presente em todos os lugares: no nascimento da JOC (Juventude Operária Católica) de Joseph Cardijn, ainda em 1933, quando Chenu vivia na Bélgica; na fundação das revistas EspritSept e Témoignage Chrétien; na instituição da Mission de Paris e da Mission de France; enfim, na fundação da revista Concilium em 1962.

Em idade muito avançada, escreveu ainda uma pequena obra-prima, La doctrine sociale de l'Eglise comme ideologie (1979), na qual, analisava todas as encíclicas sociais dos Papas.

Com o seu confrade, Yves Congar, Chenu redigiu uma Mensagem dos Padres do Concílio ao mundo, durante o Concílio Vaticano II, falando sobre a Igreja dos pobres. Com muitas emendas, fortemente enfraquecida, essa mensagem foi enviada ao mundo. A mensagem inspiraria os primeiros teólogos da libertação da América Latina e, principalmente, Gustavo Gutiérrez.

Depois da sua condenação, Chenu preferiu ir viver em Saint-Jacques, tornando-se um pilar da vida intelectual e espiritual da cidade universitária. Todos os sábados à tarde, metade do clero de Paris dirigia-se a Saint-Jacques, onde Chenu falava dos livros novos, dando notáveis conselhos sobre os livros a ler ou não. Era uma espécie de fórum no qual Chenu, à semelhança de São Tomás de Aquino nos seus Quodlibet, respondia a todas as perguntas do clero parisiense.

Participei mais de uma vez desse evento. Era verdadeiramente um acontecimento, algo como um torneio medieval, com aquele pouco de vaidade e de ingenuidade que são necessárias.

Aprendi com Chenu que o pensar é sagrado: é o intelectual que encerra o espiritual. Porém, acima de tudo, envolve-me ainda o grande calor comunicativo do padre Chenu. Era um homem da esperança, um optimista da graça. Por isso, era tomista até ao fundo.

Quando Chenu completou 70 anos, foi festejado na presença do cardeal Feltin. Este louvou Chenu porque havia aceitado humildemente e sem desobedecer as sanções impostas por Roma. Chenu levantou-se de um salto e disse: «Eminência, não era obediência, porque a obediência é uma virtude moral, um tanto ou quanto medíocre. Era a fé que eu tinha na palavra de Deus, diante da qual os choques e os incidentes de percurso nada são. É porque eu tinha a fé em Jesus Cristo e na sua Igreja».

Esse é o P. Chenu[2], discípulo da criatividade de S. Tomás de Aquino.

 

28 Janeiro 2024



[1] Veja-se o seu artigo Les signes du temps, em Nouvelle Revue Théologique 97, 1965, 29-39

[2] Texto que Edward Schillebeeckx (1914-2009) escreveu por ocasião da morte do Pe. Chenu (11.02.1990)