Camões: "O regresso aos clássicos e ao sentido do épico" - Triplov INFO

Últimas

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Camões: "O regresso aos clássicos e ao sentido do épico"

O regresso aos clássicos e ao sentido do épico

"Do Amor e da Glória em Camões", de Rui de Luna, com Natália Luiza, e Marcos Lázaro

 

 

Paulo Mendes Pinto

 

Será infindável o debate sobre aquilo que torna uma forma de expressão em Arte, tal como será ainda mais infindável a aferição do gosto no que respeita ao "antigo" ou ao "novo". A ideia de "clássico" resolve-nos os dilemas: a catalogação de uma obra como clássico permite-nos, por um lado, saber que obras ultrapassaram as barreiras do seu momento de imediata fruição e, por outro, através delas, saber o que recusar, se se quiser o rótulo de inovador.

Camões, tal como Pessoa, tem na cultura portuguesa esse condão de, ao existir, sabermos de forma clara o que imitar ou, por reação, fugir. Há autores que são esse separador de águas. Transformaram-se em símbolos, mesmo que não sejam lidos. Com um tempo longuíssimo de inclusão nos programas escolares, Camões foi sendo desgastado por um uso constante dos nacionalismos, desde o romantismo do século XIX, passando pelo movimento republicano, terminando no Estado Novo. E, contudo, apesar deste uso e abuso, Camões manteve-se na categoria do Clássico.

Por que razão foge Camões ao tempo, às modas, e está fora das mudanças que amiúde se dão na sociedade? Hoje, no ano em que se comemoram os 500 anos do nascimento deste poeta, porque interessa regressar a este clássico, um autor com uma oferta poética tão distante do nosso tempo?

Camões traz-nos o épico que perdemos com o fim da dimensão simbólica na leitura do mundo, com o fim dos ritos como parte constitutiva da forma de viver o tempo e o espaço, com o fim do valor que está para do que é físico.

Camões, sobretudo através da epopeia, é coesão. É literatura de coletivo. Não só pela temática, que é agregadora e construtora de identidade, mas porque é, também, de vivência grupal: uma epopeia, na sua origem, era declamada (não lida) à volta de um grande fogo, em torno do qual se reuniam as gentes para saber "novas".

E essas novidades não eram exatamente o que hoje abre um telejornal. As "novas" poderiam ser bem velhas na linha cronológica. Ouvia-se, pela boca dos aedos ou dos bardos, a poesia que os agarrava ao sentido de pertença. Não interessava se Ulisses já tinha chegado a casa; o importante era o caminho e as opções dramáticas que ele tivera de fazer. E é aí que reside o "clássico": as grandes questões que não se modificam com o correr das tecnologias. O Ser é o mesmo.

Como nos recorda Luc Ferry, a propósito da mitologia clássica, no seu livro La Sagesse des Mythes: Apprendre à Vivre 2, de 2008: "Inestimável lição de sabedoria para um mundo leigo como o nosso de hoje em dia, lição de vida em ruptura com o discurso religioso dos monoteísmos passados e futuros. É essa a mensagem que a filosofia terá também de traduzir como razão, para elaborar à sua maneira não menos admiráveis doutrinas de salvação sem Deus, de vida boa para os simples mortais que somos"


"Do Amor e da Glória em Camões", com Rui de Luna no piano, que também assina a composição e a direção musical, e com Natália Luiza, que declama, e Marcos Lázaro, no violino, é uma experiência sublime desse exercício hoje tão raro de fugir às definições do momentâneo e mergulhar no especial, no tempo e no espaço fora do comum.

Sob a batuta deste conhecido e aclamado barítono, somos levados a uma experiência de intensa imersão numa obra total onde a poesia, seja a épica ou lírica, se fundem com a música e voz única de Natália Luiza. Assistir a este espetáculo é comovente, vibrante, emocionante e questionador; Depois desta aventura que é assistir a tanto sentimento essencial junto, perguntamos: como conhecemos tão mal a obra de Camões? Como nos deixámos enredar numa visão que o cataloga como passado, nacionalista e, portanto, desprovido de sentido para os dias de hoje?

"Do Amor e da Glória em Camões" mostra-nos, de forma límpida, como acontece apenas com os clássicos, que Camões reside exatamente nesse patamar onde se encontram as ideias e as obras que não perdem com o tempo. O regresso à leitura de Camões, sobretudo à lírica, é uma porta de entrada nos grandes dramas do Humano. Sejam os grandes dilemas existenciais, como a oposoição entre o novo e o velho, seja o mais simples e singelo amor, Camões é material didático de puro bom gosto que nos recentra nessas questões – sim, porque para além das questões, a estética também nos alimenta.

Se a lírica nos revela o peso do sentir nos ombros de um normal vivente, o épico revela-nos a capacidade de superação. Não interessam, hoje, as leituras nacionalistas, que não são mais que a redução do sentido à ideia de coletivo vitoriosa em certos momentos da História. A epopeia é a vontade sublime de superação, de busca de sentido, de criação de um lugar no fluir do tempo. Afinal, o que todo o coletivo sempre busca para sentir que a existência de cada um não se esvai na espuma dos dias. 

 

Paulo Mendes Pinto : Artigo no JL