Newsletter de Junho
Texto de Carlos J. Pessoa Olha, amo-te! Vamos fazer um filho?
A missão do Teatro da Garagem (TG) a Angola, ao Elinga Teatro em Luanda, foi exigente e cumprida.
Os valores que orientam o serviço público prestado pelo TG permitiram reforçar o estabelecimento de pontes entre práticas teatrais tão diversas como o Elinga, e a escrita cénica e literária poderosa do José Mena Abrantes, a companhia Oásis, a companhia Enigma — Teatro, e o seu director Tony Frampênio, e tantas outras companhias e artistas; tal foi possível graças às conversas informais que tivemos, aos espectáculos a que assistimos bem como durante a mesa redonda em que participámos e nas entrevistas que demos.
Também o serviço educativo através do espectáculo Zézinha no Circo, e numa muito concorrida oficina para crianças, pode veicular os propósitos pedagógicos e artísticos do teatro ao serviço das diferentes comunidades.
O espectáculo que apresentei Monólogos Lidos e de que já dei nota, bem como a oficina que pude ministrar serviram-me para aprender, para reforçar cumplicidades e sobretudo lançar sementes para que a colaboração com o Elinga continue de forma frutuosa e inspirada, sempre em busca da oportunidade que consagra o respeito e a comunhão.
Para este mês de Junho temos ainda a apresentação do espectáculo da Universidade Sénior—Saber Maior, sempre um momento de festa e confraternização popular, bem como a apresentação do exercício final dos alunos finalistas do Curso de Teatro, ramo Actores e Produção, da Escola Superior de Teatro e Cinema, com o espectáculo On-Air, 24 horas na vida de uma rádio.
Permitam que me espraie agora, numa meditação que julgo pertinente partilhar convosco, tendo em mente a missão da Garagem e o meu papel neste momento difícil da nossa história comum, em que o espectro da guerra que se avizinha, condiciona a política e os costumes.
Na Ilíada de Homero, texto fundador sobre as Guerras de Tróia, a cólera de Aquiles não inaugura apenas a consciência da injustiça e o desejo de vingança; a cólera de Aquiles, pela morte equívoca de Pátrocolo, não tem apenas um carácter jurídico ou moral. A cólera de Aquiles radica mais fundo, no turbilhão que tudo arrasta como a torrente do rio, a força da tempestade, o tremor da terra.
A cólera de Aquiles é a geologia a manifestar-se no anthropos, na pessoa.
Na cólera de Aquiles conjuga-se a consciência de forças arrebatadoras, que remete para a origem de tudo, sendo por isso um hino ao perecível, como galáxias mortas à milhões de anos que ainda aquecem o universo.
A vida dança quando se conjuga a decisão fundadora e, ao mesmo tempo, a tragédia.
Sim Aquiles, o vencedor, está condenado, o maldito calcanhar ferido pela flecha traiçoeira vencerá o invencível; e se essa contradição canta no peito dos rapsodos, que contam episódios inextricáveis e fabulosos, é porque o clamor da guerra, e a sua crueldade, determinam que a história, e as histórias que nela se entretecem, se faça assim.
Que a história contada se faça, sobretudo, de actos impensados, de impulsos de uma violência inaudita que em cada pessoa, manifestam o desejo de reparação, não esgota o resto.
Matar a sede até engasgar-se, o acaso de uma disposição, um motivo mesquinho, uma brincadeira abominável ou ainda a revelação súbita, um golpe de sorte ou um salto, um rasgo, um ruído ou um cheiro, uma inspiração miraculosa, também surgem como elementos decisivos na escrita da história humana.
O exemplo de David contra Golias, em que a geometria iluminada pontua o espaço maior da abstração, arremessando, com a funda, o almejo maior de um dia mais claro e bom.
Por vezes a banalidade, a grosseria, a inoportunidade, a gritaria, tomam conta de cada pessoa, em desabafos e fúrias ecoando essa ancestralidade de feras acossadas e com medo.
Sim, o medo move montanhas e cria outros tantos obstáculos e bloqueios ao prosseguimento da viagem.
Não há que enganar, mais que nunca temos que estar unidos por força dos nossos medos e egoísmos, no acerto de contas impagáveis; por força da nossa ignorância atávica, de eternos devedores da lucidez, de paquímetros a medir milésimos de invisível, e enfrentar o que aí vem.
O que aí vem, independentemente das profecias, mais ou menos pessimistas, não é bom nem fácil. Cheira-se no tempo a ignominia, o destempero, a estupidez e a vaidade, de quem acha que vai escapar e está mais certo que os outros.
Ninguém vai escapar, a não ser que todos percebamos isso.
Ninguém está certo, quando a história é maior que nós.
E se a sorte determinar o melhor destino deste ou daquele; disso não depende a razão ou a clarividência dos argumentos, sequer a esperteza.
Mesmo assim a sobrevivência será breve.
Há todavia novos Aquiles e Davides que se vão levantar, no soçobrar de desespero e no derradeiro fôlego da audácia, que vão derrubar adversários, garantir uma espécie de vitoria efémera, que enganando por instantes a fatalidade, cruzará o espaço das nossas incertezas com uma bandeira, uma causa, um motivo para excitação, entusiasmo e uma argúcia inesperada, sorrateira, exemplar.
Vai ser assim, todos vamos morrer defendendo o que nos é caro independentemente do quanto fomos ou não admirados e amados; todos vamos acabar, mesmo os mais manhosos, sozinhos, diante do espelho dos nossos abismos e das decisões que determinaram a nossa solidão.
Todos vamos morrer de pé, ou deitados, a segurar a bandeira do que considerámos decente e justo, do que acreditámos ser o melhor para os que vêm.
Esse canto longínquo que nos trouxe até aqui soará no nosso espírito como a voz da nossa mãe, de tudo o que nos deu colo, ninou e acolheu um dia, em cada um de nós acreditando.
Todos temos um Pátrocolo no coração, um Golias como alvo, sede de vingança, e uma anémona no peito clamando o mar morno onde e sempre, ainda julgamos, seremos felizes.
O amanhã liberto da brutalidade, dos pensamentos mórbidos, da inquietação doentia, da náusea; as facadas com que a vida nos afundou; de tudo isso ergueremos a cabeça nas águas infestadas de crocodilos.
Assim: ri de medo, coloca o telemóvel entre os dentes e cruza o rio até à outra margem.
Depois disso, de correres até caíres de borco, de morderes o pó sem remédio; depois de te soergueres e seres esbofeteado por quem ainda te quer bem, bate à porta do teu novo amor.
Dessa que um dia se cruzou no teu destino, a tua paixão reluzente a quem ofereces, corado que nem um tomate, ideias, projectos, anedotas e entusiasmo pateta.
Diz-lhe então: olha, não consigo esquecer o teu sorriso, amo-te, vamos fazer um filho?