A penumbra varria a casa de ponta a ponta. O silêncio também. A única luz que a habitava vinha da pequena janela da cozinha, vizinha de um candeeiro de rua. O seu brilho invadia o parapeito e envergonhava-se logo depois de passar o primeiro armário. Deixava-se morrer ali, entre a ombreira da porta e os primeiros mosaicos da casa de jantar.
Puxou uma cadeira e sentou-se. Estudou cada canto daquele espaço que conhecia como a palma da sua mão. Ainda ouvia as vozes, os passos. Sentia o cheiro a fritos e a aguardente. A mesa de madeira envernizada estava vazia, mas se fechasse os olhos e tateasse com os dedos, sentiria nas suas memórias o relevo floreado do prato de frutos secos que enfeitava cada Natal.
Nunca houve árvore. Enchiam-se os sítios com outros valores. Uma travessa de filhoses, outra de arroz-doce. Os tabuleiros de carne e de bacalhau. O vinho. Nem tudo era feito com açúcar, mas tudo tinha o travo adocicado da união.
Respirou fundo e deixou-se afundar na cadeira. A mesma cadeira que se multiplicava para caber sempre mais alguém, e que agora não recebia ninguém. Levantou o rosto e fixou o olhar nos brilhos tímidos com que o velho lustre pintava as paredes à sua volta. Era como se dançassem para ela. Como se se despedissem em festa de todas as festas que aquela casa recebera.
Quis espreitar o quarto à procura do alguidar com a massa dos sonhos. Quis folhear os livros que folheou pela vida fora. Quis deitar-se na cama encostada à parede, enquanto via as estrelas pela claraboia.
Só mais uma vez.
Só mais um Natal.
Pegou no sapato. Era um sapato branco, feito de uma pele macia e picotada. Sempre lhe fizera confusão que num sapato tão pequeno coubessem tantas promessas.
- Deixa o sapatinho na chaminé para o menino Jesus te trazer as prendas.
Levantou-se devagar, a par com o ranger da cadeira, como se conversassem, se despedissem.
Cinco passos, foram os necessários para chegar à chaminé. Fitou os azulejos brancos, depois a janela. Pousou o sapato, mas não pediu nada. Há presentes que só podem ser conjugados no pretérito perfeito.
Dec 25, 2024