«Sorriso nos lábios» é erro de português? - Triplov INFO

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segunda-feira, 11 de setembro de 2023

«Sorriso nos lábios» é erro de português?

Um dos géneros de maior sucesso por essas redes sociais fora são os textos que apresentam listas de erros de português. Nada teria contra tais listas não fosse dar-se o caso quase sempre misturarem erros verdadeiros com erros inventados.

Dou um exemplo. Ainda há uns tempos encontrei numa rede de cujo nome não me quero lembrar uma imagem com uma lista de redundâncias que seriam erros de português a evitar. 

Uma dessas redundâncias proibidas era «um sorriso nos lábios» — porque, na lógica impecável e implacável de quem criou a imagem, um sorriso tem sempre de incluir os lábios; portanto, a expressão está errada.

Ah, a redundância, esse papão da língua! Se alguma expressão parece ser redundante é para cortar sem dó nem piedade (ou melhor, apenas sem dó, porque a piedade já é um pouco redundante).

E, no entanto, todas as línguas têm redundâncias que foram sendo criadas naturamente para ajudar à comunicação e à expressividade — sem estas redundâncias, a comunicação só seria possível em situações em que não há ruído e todos nos entendemos perfeitamente, ou seja, situações muito raras e muito pouco humanas. Uma língua sem redundâncias seria uma língua de robôs. 

Basta pensar que se eu digo «tu és linda» já estou a usar uma redundância porque, se a forma verbal é «és», o «tu» não está ali a fazer nada. Sim, a gramática do português até me permite omitir o «tu» – mas há casos em que a frase pede o pronome pessoal. Os anti-redundâncias acham que nunca devo usar o «tu» por ser redundante?

Ah, mas dizem-me agora: isso é um absurdo! Isso é ir contra o funcionamento da língua! 

Exacto! A língua funciona com redundâncias: na gramática, no vocabulário e nas expressões que usamos todos os dias. A linguagem humana tem redundâncias a torto e a direito – como o nosso corpo e como, aliás, toda a natureza. Na língua, há até redundâncias que são obrigatórias: são as chamadas concordâncias. Se eu digo «uma terra linda» estou a marcar o feminino três vezes. É informação redundante.

Querem mesmo evitar as tais redundâncias à força? Para quê? Não vamos ficar a falar de forma mais clara nem mais bonita. Antes pelo contrário.

Enfim, sei que ninguém quer evitar todas as redundâncias. Só umas quantas, escolhidas à sorte. Mas para quê, pergunto eu? Só para terem o belo prazer de corrigir os outros?

Convençam-se: uma língua sem redundâncias é impossível – e muito feia. Aliás, se eu também odiasse as redundâncias, podia ter reduzido este texto a uma só frase: «As redundâncias não fazem mal.» Mas não era a mesma coisa, pois não?

Para ver onde quero chegar na prática, repare que a tal lista de redundâncias que encontrei no Facebook incluía estas três expressões supostamente erradas (entre outras mais perigosas):

  • «sorriso nos lábios»;
  • «elo de ligação»;
  • «novo lançamento».

Enfim, se quer mesmo obrigar toda a gente a evitar «elo de ligação» e «novo lançamento», força nisso (embora pergunte: se alguém fizer dois lançamentos dum livro em terras diferentes, o segundo lançamento não é novo?).

Agora, a redundância que gostava de continuar a usar, se me permitem, é essa do «sorriso nos lábios».

Repare nisto:

«Ela vinha a descer a rua com um sorriso nos lábios.»

Sim, sim, aquele «nos lábios» pode ser retirado e o significado é o mesmo:

«Ela vinha a descer a rua com um sorriso.» 

Sim, porra: o significado é o mesmo – o sorriso é que não. E a própria rua fica bem menos alegre.

E assim andam algumas pessoas com uma caneta na mão a riscar a vermelho as palavras dos outros, mesmo quando essas palavras não fazem mal nenhum e são apenas uma forma um pouco mais expressiva – mais visual, mais clara! – de usar a língua.

Enfim, há quem diga que tudo o que se pode dizer em duas palavras nunca se deve dizer em três ou quatro. Isto da língua é uma coisa muito séria e muito espartana: é para usar no osso, sempre no mínimo, sem brincadeiras e – acima de tudo – sem palavras a mais. Ora, se assim fosse, ficaríamos sem muita da boa literatura que se faz de palavras para lá do estritamente necessário.

Vá, ponham mas é um sorriso nesses lábios tão sérios.

(O texto acima apareceu, numa versão anterior, no Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.)

Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas na página Certas Palavras e fala sobre livros na Pilha de Livros. O seu mais recente livro é o Atlas Histórico da Escrita.