Carta de Setembro do Teatro da Garagem - Triplov INFO

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quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Carta de Setembro do Teatro da Garagem



Newsletter de Setembro
Texto de Carlos J. Pessoa
 
 
Vem daí!
 
Recomeçar é ter em mente que nunca acabam: as dificuldades, os desafios, o fascínio, os sonhos, o desejo, as desilusões…
(Vá! Completa as reticências, dispara ideias, acende o pensamento!) 
Recomeçar é a pedra de toque do Fausto de Goethe , que estamos a trabalhar; é perceber que nunca percebemos completamente o que nos perturba, o que nos fascina e obceca; que ficamos aquém ou além, e que isso não é mau, nem bom, nem assim-assim. 
Que é uma ironia, uma maluquice, um gesto absurdo que nos diverte; um sobressalto que nos molda para o próximo passo. 
Na Garagem talvez já não sejamos banda, banda de Garagem, ou banda a passar na passarela desbotada; nunca fomos de choradinho nem "do antigamente é que era bom!"
Os bons nunca foram do antigamente, é por isso que Goethe é bom, porque é de agora, da Garagem atenta!  
Atenta ao Goethe que nos alerta, ensina , desafia e é generoso; nos dá e fundamenta, a sua experiência e o seu exemplo, a sua paixão e o seu arrojo. 
Aprendemos com Goethe a não sermos sentimentais, porque a nostalgia pode ser tão só uma presunção aristocrática que nada colhe de inteligência.
Somos oficina, laboratório, estamos de mangas arregaçadas, percebendo e inovando, ouvindo, abrindo as portas a quem faz, sabe e pensa de maneira diferente; a reorganizar a companhia, os seus métodos, os seus procedimentos; a arriscar e a crescer. 
A cumprir e a fazer cumprir a missão de serviço público. 
A Garagem é grande e de portas abertas , como uma paisagem democrática, onde se pode experimentar, problematizar, ter ideias, convidar: beber café no Café da Garagem! 
Testar novas/velhas maneiras de se fazer teatro, de confeccionar sandes de sensibilidade com papelinhos de poesia.
Demonstrando que cão velho também pode aprender truques novos!
A Garagem está mobilizada para fazer o teatro que o mundo precisa e não necessariamente, o que o mundo pede.
Sim, temos essa obrigação, não queremos ser Faustos: deslumbrados no nosso egotismo, na auto-suficiência nauseabunda, no proselitismo militante, nem fazer parte da chusma de indignados, nem da prepotência enraivecida, cega. 
Seguimos! 
Seguimos Fausto, passo a passo: da intimidade das ilusões, passando pelo pequeno mundo das paixões, culminando no grande mundo das quimeras; da tragédia anunciada que se cola na actualidade; na solidão opinativa, de quem nada sabendo, de certezas vive; carente, sem corpo, assexuado e sem sexo, surdo e histérico, no vazio digital, de onde até o diabo se ausentou. 
Queremos contrariar isso, queremos que percebam esta oportunidade: ouvir Goethe, ler Goethe, recitar os antigos como quem escuta sussurros e não se gaba de citações, antes se inquieta de exclamações : "eureka, é isto!" Dizem vocês! 
Queremos que possam aprender a reconhecer a dificuldade da natureza humana, a complexidade do que é simples como o perfume de uma tília, a metamorfose de uma flor, ou a génese da paleta do arco-íris. 
Queremos que se virem para as vossas inquietações sem quererem soluções milagrosas, muito menos dar lições; ou ainda pregar credos como loucos na praça.   
Gostem de pedras curiosas, gostem do desenho feito por uma traça. 
Para onde nos leva a curiosidade e a cupidez? A Margarida? À de Tróia, Helena? À tacanhez? 
Nesta cidade nossa desabrigada onde ventos assobiam, que tremores abalam o declínio das casas, que tecidos se fiam? 
Serás credor de tamanha ambição? Oh guloso sem coração! 
Serve-nos o teatro porque o teatro nos abriga, porque o teatro nos obriga, porque a Garagem nos detém…
 e nos pede, com gentileza, sempre, para recomeçar… lembrando-nos que estar vivo é não desistir das pessoas, mesmo quando nos sentimos traídos e temos a confiança abalada, não desistir das pessoas é não desistirmos de nós, restando só isso, tudo isso, de recomeçar… 
Uma nova temporada , um novo dia, cada instante… e fazer desta azáfama uma ágora, uma alegria, um disparate e uma fantasia.
Um verso que imaginas para adormecer, uma canção que vais entoar no acordar. Um grito que dás na varanda da tua casa: "aiiiiindaaaa sooo eeeeu?"
Vá, ainda vais a tempo! Recomeça. 
Vem daí.