O Dia Mundial da Poesia celebra-se todos os anos a 21 de março.
A data foi criada na 30ª Conferência Geral da UNESCO em 16 de novembro de 1999.
O Dia Mundial da Poesia comemora a diversidade do diálogo, a livre criação de ideias através das palavras, da criatividade e da inovação. A data visa a importância da reflexão sobre o poder da linguagem e do desenvolvimento das habilidades de cada pessoa. Isso porque a poesia contribui para a diversidade criativa, inferindo na nossa perceção e compreensão do mundo.
A cerejeira
São pessoas com raízes
tão fundamente enterradas
no coração
que sangram por espinhos
finos acúleos
e deixam regos de cicatrizes.
As árvores são antepassados
de braços erguidos sobre a cabeça
com cabelos encarapinhados.
Caem de maduros frutos doces
da cabeça dos homens
pensamentos luxuriantes
entre os quais repicam sinos.
Somos a cerejeira
de vermelhas bagas como brincos
nas folhas de pequenas orelhas
ouriculares
no cadinho das letras
audíveis estrelas
brilham com seus dentes de ouro
na cúpula sombriamente noturna
a escorrer tinta azul dos dedos.
Em baixo correm riachos
subterrâneos
até ao caranguejo de lava
do centro incandescente da terra
que tudo alumia e alimenta.
Cintilam ideias, fulguram mentes
agitam-se as folhas tagarelas
dos choupos tremedores
mas nós somos a interdita cerejeira
de punhais trespassada
à porta dos pais fechada
os velhos sentados na pedra antiga
dos provérbios contados
ao sol, diante da velha choupana
enquanto galinhas debicam grãos de sol
na crepitação da palha
despedem centelhas os folículos
das espigas e rente ao chão
nos agostos insondáveis
as manchas prateadas da colcha acetinada
das gramíneas.
Por cima de tudo isto, as árvores.
Essas pessoas de chapéu na cabeça para proteger
os pensamentos
e de mão encostada ao lado esquerdo do peito
a serenar o coração.
Meu coração não te partas
como travessa de barro
pesada de arroz de mágoas
os olhos no luto do forno
carbonizados sem dizer adeus
nesta despedida imóvel
à porta da casa de deus
fechada entre olivas cinéreas
ao trémulo clarão da cerejeira.
Lá longe, o negro túmulo abeira-se
de um arbusto de recordações
bagas num perigo vermelho
que nem pintam nem são passas
antes colar de pérolas de veneno.
Chegam pássaros de bico dourado
para o repasto das árvores
e caem mortos, caem mortos
com tanta fruta no chão
que ninguém aproveita
mas deixar os pássaros comer,
isso é que não!
Gaia, a superterra, a deusa-mater
feita de estruturas e relações
não sabe sentir vergonha
nem ódio contra esta gente
que ainda não saiu da fase evolutiva de macaco.
Por isso não se vinga
apenas nos dá o troco dos nossos atos:
mosquitos com fartura, baratas tremendas
as casas invadidas pelos ratos
e fruta sem gosto, envenenada
as alfaces radioactivas
que nos fazem cair os cabelos
e os dentes das gengivas.
Quando era tão fácil deixar comer as aves
numa terra em que há cerejas para todos.
Zumbem abelhas à volta do tronco alto
e carcomido dos anos
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer disso.
Idosa cerejeira, tocada um pouco de
Alzheimer, ampara-te
ao meu braço amigo.
Eis porém que chega o carniceiro
com seu cutelo
de fio fino
à garganta da mãe apontado.
O tronco dobra-se para dentro
os ramos apertam-se em torno da dor
salta uma espadana de sangue
cerejas vermelhas cerejas de sangue
salpicam de sangue cereja o áspero térreo chão.
Outra machadada
no tronco da única árvore
de porte no terreno
anciã do pomar
os cabelos de líquenes brancos
já anunciando morte a seu tempo
sem precisão de eutanásia.
A velha grita que não fez nada
a velha agarra-se ao sofrimento próprio e alheio
e geme que não foi ela
não foi ela quem interditou aos pássaros
as mais altas cerejas da idosa
cerejeira
é só um grito único a varrê-la das raízes
à cúpula dos pensamentos
rubis amargos
verdes ramas
rubis amargos
sangue em gotícolas que se espalha
e a seiva de sangue é um regato
que se derrama
do coração aos pés da velha árvora
decana nesse campo onde outrora
com nobreza
a nobreza que nunca mais se viu em casa
nem casinhas nem casota
com nobreza de sangue
à sombra da elevada cerejeira
erguia-se uma graciosa choupana.
Caem-lhe um a um os braços
num roçagar de folhagem e estampido breve
das projetadas cerejas
colares de coral vivente
em sumo solto abaladas
lágrimas de ferida pungente
o tronco aberto à facada
a ver-se-lhe tudo por dentro:
o coração partido,
as tripas enroladas, os rins decepados
que mal se seguram por um fio
e a seiva vermelho vivo
de cochinilha
que escorre
goma animal nos dentes.
A besta armada de cutelo e machado e punhal
abate abate
abate a velha cerejeira
só para mostrar ao mundo
que tem tomates.
Zumbem abelhas à volta dos toros
ensanguentados
e carcomidos dos anos
no chão sem sentidos empilhados
porque as árvores envelhecem
como os amos
e merecem como eles morrer disso.
In «Arboreto», em publicação na Arte-Livros, de São Paulo