Anselmo Borges
Diário de Notícias 21 Outubro 2023
(Continuação)
Em contraposição com a Torre de Babel, quando cada um quer ser o dominador de tudo e de todos, num orgulho erguido até ao céu, de tal modo que ninguém se entende, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no Pentecostes - não esquecer que Natália Correia era espírito-santista. "De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem." Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, "pois cada um os ouvia falar na sua própria língua". Atónitos e maravilhados diziam: "Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!"
Cada vez mais tomamos consciência disso: o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade na diferença e pela diferença na igualdade, pois então os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. Portanto, Pentecostes tem de ser todos os dias. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor do Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.
Um autor é grande - e Natália é grande -, quando é fonte de inspiração e iluminação do futuro. Aí está: na actual situação do mundo globalizado e terrivelmente ameaçado, em que a globalização tem sido sobretudo tecnológica e económico-financeira no quadro do neoliberalismo, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte - na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global,... - e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.
Dada a presente crise global, dramática e mesmo trágica, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macro-paradigma de desenvolvimento e também das relações entre os povos, incluindo a sua relação com a natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade.
A tragédia repete-se constantemente. Quando, por exemplo, um ditador brutal, ignorando o Direito Internacional e as Nações Unidas, invade um país independente, aí está uma Babel, num mundo perigoso, com horrores e catástrofes à vista. Não é esse horror que vivemos na e com a Ucrânia? Não está aí, terrível, de consequências catastróficas, outra guerra no Médio Oriente?
Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais.
Quando se pensa no aquecimento global, na ameaça climática, na ameaça nuclear, no fosso cada vez mais fundo entre ricos e pobres, nos gastos astronómicos com novos armamentos - anualmente, uns 2 milhões de milhões de euros -, é preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de um suicídio colectivo.
Numa entrevista recente, um dos intelectuais mais influentes da actualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: "Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema."
Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal - estamos a celebrar os 400 anos do seu nascimento - escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (le rien et l"infini). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana, a única verdadeira aspiração, desde o princípio, como se diz no Génesis, é querer "ser como Deus". Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus pelo orgulho e a dominação de tudo e de todos, construindo uma torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede quando desce em Pentecostes.
Padre e professor de Filosofia.
Escreve de acordo com a antiga ortografia
https://www.dn.pt/opiniao/babel-e-o-pentecostes-homenagem-a-natalia-correia-2-17204711.html
SERÁ POSSÍVEL A PAZ ENTRE ISRAEL E A PALESTINA?
Frei Bento Domingues, O.P.
1. Tenho seguido o trabalho notável do Público para oferecer, aos seus leitores, diversas perspectivas para a leitura da tragédia actual que está a destruir Israel e a Palestina. Não era, todavia, sobre esta tragédia que tinha pensado na crónica deste Domingo. Por puro acaso, encontrei um longo texto da minha intervenção na Sessão do Dia Internacional de Solidariedade com a Palestina, em 2009. Nem sabia que esse texto existia. Não o vou reproduzir. Seriam necessárias muitas crónicas. Destaco, apenas, algumas passagens para entender algo deste tempo tenebroso sem ceder ao cinismo e ao pessimismo de que falava Álvaro Vasconcelos e, sobretudo, apontando algum caminho de esperança.
Referi nesse documento que, em 1920, ainda sobre a administração britânica, Einstein escreveu uma carta a um árabe, com uma proposta secreta: nós, árabes e judeus, devemos escolher um conjunto de pessoas, um conselho, em que haja sempre paridade absoluta de um lado e de outro, para fazermos um caminho em conjunto pela autonomia e para reivindicarmos esta terra para nós judeus e árabes. Fez um mini-regulamento para que não fosse absorvido pelos dirigentes políticos nem dum lado, nem do outro, nem de judeus, nem de muçulmanos, nem de árabes e, nem claro, pela presença britânica.
Era evidente que o povo palestino preferia que não existisse o estado de Israel e Israel não queria um estado palestino, a não ser que fosse conforme os seus interesses e ia estudando a maneira de o estado palestino ser impossível.
O que importava era ajudar a fazer compreender os dirigentes, dos dois povos, que estão todos a ser vítimas do medo, estão todos a ser vítimas da desconfiança, estão todos a ser vítimas do ódio, estão todos a multiplicar a violência e o ódio. Isto não é julgar da legitimidade de ninguém, é a própria natureza das atitudes bélicas para as quais não há saída.
Uma solidariedade que não favoreça a cooperação justa entre Israel e o povo palestino também não é solidariedade, apenas alarga o fosso e o muro. Temos exemplos, na História, para provar que só o caminho do perdão mútuo conduz à reconciliação e à paz. A França e a Alemanha estiveram em guerra – e que guerra! –, tiveram de fazer esse gesto. Sem esse gesto teriam um sentido de guerra permanente. Nelson Mandela é o exemplo mais eloquente desse método.
Conhecemos judeus e palestinos que já fazem esse caminho. Atrevo-me a dizer que são eles que precisam da solidariedade mundial, para fazerem uma grande corrente global, que leve as lideranças dos dois povos a perceber que os caminhos que têm seguido não levam a lado nenhum a não ser engrossar o rio de sangue.
As pessoas poderão perguntar, isso é possível? Não tenho resposta. No entanto, diria que é possível escolher um caminho para uma paz, onde não haja vencidos nem vencedores. Na situação actual, estão todos a ser vencidos, estão todos a contribuir para o pior.
Uma sugestão simples: é necessário divulgar, a nível mundial, todas as iniciativas, todas as organizações, todas as pessoas que desejam a paz. Há judeus apaixonados pelo povo palestino e há palestinos que são, também, apaixonados por judeus e já viveram, em muitas épocas, em conjunto e em amizade. Portanto, o que neste momento é necessário é engrossar, de um lado e doutro, aquelas pessoas que pensam que é possível que os dois povos possam viver, organizar-se de outra maneira, diferente. A actuação do Estado de Israel parece a de um estado belicista, é auto-destruidora. Destrói, em primeiro lugar, os próprios israelitas.
Quando falamos em povo, devemos potenciar tudo o que existe nos povos de desejo de paz para fazerem caminhos e até de resistência não violenta, mas de resistência activa, algo que impressione pelo amor mútuo que existe nos dois povos.
2. Em 2001, a escritora Karen Amstrong recebeu o prémio TED por ter lançado a Carta da Compaixão, com base na regra de ouro, tanto na sua formulação positiva como negativa – que é central em todas as religiões –, não só nas religiões abraâmicas, mas em todas as religiões. Estas são, quase sempre, apresentadas como focos de guerras. Esse prémio já foi dado a muitos cientistas e personalidades que têm tido uma ideia nova, uma ideia capaz de renovar o mundo. Em 18 minutos, tinha de expor, perante uma grande assembleia com muitos peritos, essa sua ideia.
A regra de ouro que Karen Amstrong descobriu com espanto, no coração das diferentes tradições religiosas, éticas e espirituais, embora formulada com pequenas diferenças e explicitada de várias maneiras na sua intervenção, costuma exprimir-se de forma negativa, não faças aos outros o que não desejas que os outros te façam e, de forma positiva, faz aos outros o que gostarias que os outros te fizessem. Esta é a regra de ouro que é muito anterior tanto ao judaísmo como ao cristianismo, mas foi acolhida nos princípios do judaísmo e do cristianismo e, depois, também do Islão. Deve englobar ateus, agnósticos, todas as pessoas de diferentes tendências porque é um princípio ético, princípio que serve de guia a toda a Carta da Compaixão.
Compaixão não é comiseração, pena, situação de coitadinhos e de coitadinhas. Quando falamos em compaixão não se trata só de recusar a indiferença perante a tragédia. Impele a trabalhar sem descanso para aliviar o sofrimento do próximo, a destronar o nosso eu do centro do mundo para, nele, colocar os outros. Ensina-nos a reconhecer o carácter sagrado de cada ser humano e a tratar cada pessoa, sem excepção, com respeito, equidade e absoluta justiça.
A carta convoca todos os homens e mulheres a recolocar a compaixão no centro da moral e das religiões, a retomar o antigo princípio de que são ilegítimas todas as interpretações das escrituras religiosas que geram violência, ódio ou desprezo. A cultivar uma inteligência compassiva perante o sofrimento de todos os seres humanos, mesmo daqueles que nós consideramos nossos inimigos e de quem nos consideramos, muitas vezes, inimigos.
Esta carta não pretende lançar uma nova organização. O seu objectivo é fazer ressaltar o esforço de todos os grupos e movimentos para aumentar a visibilidade do seu trabalho e torná-los contagiantes. A carta pretende mostrar, de forma activa, que a voz do negativismo e da violência, muitas vezes associada à religião e às religiões, é apenas de uma minoria e que a voz da compaixão é, pelo contrário, a voz da grande maioria.
3. É urgente revelar os judeus que são solidários com o povo palestino e os palestinos que são solidários com o povo judeu. Sem apoiar e robustecer, de forma prática, esta solidariedade só pensaremos em robustecer o equipamento bélico, de um lado e do outro, para ver quem mata mais.
Fazer crescer este sentimento de estima mútua pode levar muito tempo, mas é a direcção certa, a direcção fecunda porque, desde já, escolhe a cultura da paz que vai gerando uma terra de convívio, uma terra santa. Neste momento, parece uma terra maldita.
O roteiro da paz não deve ficar só na mão dos dirigentes políticos. Deve procurar envolver todas as pessoas de boa vontade a nível mundial.
22 Outubro 2023