Texto de Carlos J. Pessoa sobre os 35 anos do Teatro da Garagem Corre que a beleza é como o Lucky Luke: mais rápida que a própria sombra! Começar o ano de 2024 a escrever sobre os 35 anos da Garagem não é fácil; tentar uma conversa comigo mesmo sobre quem era nessa época, e quem sou hoje, ainda menos. Posso dizer que quando nos olhamos ao espelho, não são as qualidades que contam, mas o modo como lidamos com os defeitos. Pouco me importam os méritos, se é que os tive, bem como os balanços de um trabalho artístico cuja memória é um campo aberto, que não me diz respeito, na medida em que, para o melhor e o pior, falará por si. O que me interessa, o que vos proponho neste Janeiro de 2024, como Janus, com um duplo olhar, sobre o passado e o futuro, é um foco que se detém na perseverança e na vontade; vontade de continuar a fazer teatro, vontade de correr. Naquela altura, nos anos 80, atravessava a linha férrea com o comboio prestes a partir; ouvia o apito e tinha meia dúzia de segundos para atravessar a linha e entrar na carruagem da frente, antes que as portas fechassem; era um jogo perigoso, por isso irresistível. O teatro é isso para mim, um jogo perigoso e irresistível, como passar à frente do comboio depois do apito de marcha. Por isso continuo a correr, apesar do tendão de Aquiles; por loucura, por uma ironia irreverente, que insiste em não me abandonar. Não é possível fintar esse passado em que te habituaste a tentares, a correres ( a escreveres) : "corre, vai Portugal!" Esse sentimento de postal e ainda assim, Portugal: casa gravada numa língua de carne que se mexe, sem que consigas perceber, exactamente, o que queres dizer. "O sacrifício é dizer que não", dizias isso? Parvo! Caías sempre e achavas que eram "quedas estratégicas; histórias para contar aos netos". E se fosse verdade, se fosse mesmo assim: dizer "não" em nome de algo maior que não fosse fama, nem glória, nem cegueira, nem comoção? A serenidade de ter-te aqui, abandonado e sonolento. Onde estavas tu, quando o teatro espantou o teu medo? Onde estavas tu, quando de pé em cima de uma mesa, prometias mundos e fundos, a salvação e tudo o mais, e parecias perdido, ausente, triste? Onde estavas tu, quando esse entusiasmo mobilizava amigos e inimigos? Quando eras fértil e ninguém? Quando o teatro te descia goela abaixo como uma espada de faquir? Onde estavas no ano da graça de 1989, quando se adivinhavam já todas as desgraças? Quando sabias que tudo tinha de correr bem, porque tudo iria correr mal? Como lidar com a visão tenebrosa de um século horrendo? O teu século, o nosso século, na transição dos séculos? Como lidar com a cólera, a falta de tacto, a cobardia, a mediocridade, a estupidez, a publicidade, as redes sociais e o telejornal; o alcance nauseabundo da vida humana? Como lidar com a história que se adivinhava sinistra, num mundo de sobreviventes? Como ajudar os semelhantes aos gritos, tantos gritos, tanta surdez e tantos gritos, como abraçar aquela gente, gente com os mesmos gestos da tua gente? Como beijar a testa fria da tua mãe morta? A tua mãe morta, tão jovem e bonita, como Ofélia num riacho. Onde estavas, quando definitivamente fizeste do teatro a tua vida, a tua desgraça, a tua ilusão, a tua medicina, o teu veneno; o teu destino? O que estavas a fazer, nesse longínquo ano de 1989, numa Garagem de pés descalços, ou nú a correr numa praia? O que querias tu dizer com a tua nudez? Soberba, vaidade, desafio, inspiração, torpor? Faltava-te tudo, tudo e ainda assim parecias ser livre, tão livre(!) mesmo com a águia a debicar-te o cérebro e o fígado. Escrevias as primeiras palavras "na hora de maior sol". Hora de maior sol? Meio-dia? Hora presumível do teu nascimento, para este mundo e para o teatro? O fogo de um Prometeu da Abóboda? E agora passados todos estes anos, onde te encontras? Onde estás tu agora, sem agora, sem passado nem futuro; onde estás tu agora, com um cão aninhado a teus pés? Na pedra de um túmulo medieval? Na escuridão de uma noite fria e antiquíssima? Olhas as tuas mãos e não tens mãos a medir com tanta coisa, tanta coisa, quase um enfarte, uma embolia; a sufocares (!)… livra-te do passado, evita o revivalismo e a comiseração , como quem foge da peste; livra-te de mim em 1989, livra-te de ti para sempre. Faz delete, perde a identidade, todos os cartões, hackeia os registos! Só não constando, constas; só não estando estás, assim como uma nuvem que é água a voar. E corre, corre como um cavalo que cerra os dentes: "não pares, não pares nunca Portugal, corre, corre até ao fim! Mesmo que percas, corre", ganha o respeito por ti mesmo Portugal; ganha tu e tu! Que ganhe a gente humilde, que ganhes tu estrangeiro, ilustre desconhecido que me devolves a imagem… o rosto e o perdão. Só não te perdoarei se desistires! ( …e a multidão atravessa a linha de meta, numa paralela infinita...) Devolve-me o perdão para que te possa perdoar todo o bem que fizeste do mal praticado. Devolve-me o perdão para que o sentimento de derrota, seja… de curta duração. Que são 35 anos? 36?… Menos que o estridular, que o cri-cri, de um grilo. Nasceste ainda à pouco em Dezembro de 2023, no sono da tua neta, e continuas em Novembro de 1989: vais continuar a correr, a mancar, a rastejar, sem saíres do mesmo sítio (?), com o peito arquejante, como o teu pai nos cuidados intensivos, numa sala muito bem iluminada, porque é assim, num palco também, tudo muito bem iluminado (?), a vida e a morte, o mundo nos cuidados intensivos, com luz de aplauso… Vais aplaudir de pé, sozinho: os ecos de uma justiça derradeira, numa sala repleta de brilhos, serpentinas, cones de papel e… black-out. Não te esqueças, diz aos actores do teu próximo espectáculo: "sobreviver é dar a mão ao teu semelhante e nunca desistir da beleza. Porque a beleza é como o Lucky Luke, mais rápida que a própria sombra." Carlos J Pessoa Beringel, 2 Janeiro de 2024 |