Declaração Universal dos Deveres Humanos
Anselmo Borges
Diário de Notícias 30 Dezembro 2023
No passado dia 10 de Dezembro celebrou-se o 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. De facto, ela foi adoptada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948, em Paris: "A Assembleia-Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objectivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito por esses direitos e liberdades, e, pela adopção de medidas progressivas de carácter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efectiva." Nos artigos 1 e 2 lê-se: "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos" e podem invocar os direitos e liberdades desta Declaração, "sem distinção alguma de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social, fortuna, nascimento ou qualquer outra situação..."
Lembrando precisamente a Declaração e os seus 75 anos, permito-me retomar uma síntese de outra Declaração, infelizmente menos conhecida e invocada: a Declaração Universal dos Deveres Humanos, de que há tradução em português - tomo a liberdade de referir que o último contacto de Maria Barroso comigo foi precisamente para me lembrar isso. Para superar a crise e para que a esperança não seja mera ilusão, wishfull thinking, precisamos todos de ser fiéis às nossas responsabilidades e cumprir os nossos deveres.
Já na discussão do Parlamento Revolucionário de Paris sobre os Direitos Humanos, em 1789, se tinha visto que "direitos e deveres têm de estar vinculados", pois "a tendência para fixar-se nos direitos e esquecer os deveres" tem "consequências devastadoras".
Foi assim que, em 1997 e após debates durante 10 anos, o Interaction Council (Conselho Interacção) de antigos chefes de Estado e de Governo, como Maria de Lourdes Pintasilgo, V. Giscard d"Estaing, Kenneth Kaunda, Felipe González, Mikhail Gorbachev, Shimon Peres, fundado em 1983 pelo primeiro-ministro japonês Takeo Fukuda, sob a presidência do antigo chanceler alemão Helmut Schmidt, propôs a Declaração Universal dos Deveres Humanos. Na sua redacção, teve lugar o famoso teólogo Hans Küng.
O Preâmbulo sublinha que: o reconhecimento da dignidade e dos direitos iguais e inalienáveis de todos implica obrigações e deveres; a insistência exclusiva nos direitos pode acarretar conflitos, divisões e litígios intermináveis, e o desrespeito pelos deveres humanos pode levar à ilegalidade e ao caos; os problemas globais exigem soluções globais, que só podem ser alcançadas mediante ideias, valores e normas respeitados por todas as culturas e sociedades; todos têm o dever de promover uma ordem social melhor, tanto no seu país como globalmente, mas este objectivo não pode ser alcançado apenas com leis, prescrições e convenções. Nestes termos, a Assembleia-Geral proclama esta Declaração, a que está subjacente "a plena aceitação da dignidade de todas as pessoas, a sua liberdade e igualdade inalienáveis, e a solidariedade de todos", seguindo-se os seus 19 artigos, de que se apresenta uma síntese.
1. Princípios fundamentais para a Humanidade. Cada um/a e todos têm o dever de tratar todas as pessoas de modo humano, lutar pela dignidade e auto-estima de todos os outros, promover o bem e evitar o mal em todas as ocasiões, assumir os deveres para com cada um/a e todos, para com as famílias e comunidades, raças, nações e religiões, num espírito de solidariedade: não faças aos outros o que não queres que te façam a ti.
2. Não-violência e respeito pela vida. Todos têm o dever de respeitar a vida. Todo o cidadão e toda a autoridade pública têm o dever de agir de forma pacífica e não violenta. Todas as pessoas têm o dever de proteger o ar, a água e o solo da Terra para bem dos habitantes actuais e das gerações futuras.
3. Justiça e solidariedade. Todos têm o dever de comportar-se com integridade, honestidade e equidade. Dispondo dos meios necessários, todos têm o dever de fazer esforços sérios para vencer a pobreza, a subnutrição, a ignorância e a desigualdade, e prestar apoio aos necessitados, aos desfavorecidos, aos deficientes e às vítimas de discriminação. Todos os bens e riquezas devem ser usados de modo responsável, de acordo com a justiça e para o progresso da raça humana.
4. Verdade e tolerância. Todos têm o dever de falar e agir com verdade. Os códigos profissionais e outros códigos de ética devem reflectir a prioridade de padrões gerais como a verdade e a justiça. A liberdade dos média acarreta o dever especial de uma informação precisa e verdadeira. Os representantes das religiões têm o dever especial de evitar manifestações de preconceito e actos de discriminação contra as pessoas de outras crenças.
5. Respeito mútuo e companheirismo. Todos os homens e todas mulheres têm o dever de demonstrar respeito uns para com os outros e compreensão no seu relacionamento. Em todas as suas variedades culturais e religiosas, o casamento requer amor, lealdade e perdão e deve procurar garantir segurança e apoio mútuo. O planeamento familiar é um dever de todos os casais. O relacionamento entre os pais e os filhos deve reflectir o amor mútuo, o respeito, a consideração e o cuidado.
Bom Ano 2024!
Padre e professor de Filosofia
https://www.dn.pt/opiniao/declaracao-universal-dos-deveres-humanos-17579812.html
OS GRITOS DO PAPA FRANCISCO
Frei Bento Domingues, O.P.
1. No Público do dia 26 deste mês, Alexandra Lucas Coelho fez uma impressionante reportagem, de quatro páginas, sobre o Natal em Belém. O Público e a autora estão de parabéns.
Conta-nos que uma artista pôs uma incubadora com um Jesus morto pelas bombas e colocou-a no pátio da Basílica da Natividade, bem no caminho de quem passa. Cristo nasceu aqui há 2023 anos, crêem os cristãos. Este ano, em Belém, não há festa, mas houve missa de Natal. Na homilia, o patriarca destacou que guerra e ocupação têm de acabar. Foi o Natal mais triste de sempre. «A Europa vem rezar na nossa igreja e não faz nada contra este genocídio». Mais de 100 mortos num ataque de Israel em Gaza na noite de Natal!
Quem não se cala e grita a sua indignação é o Papa Francisco e insiste que também nós não nos devemos calar. Na sua Mensagem Urbi et Orbi, deste Natal, disse que, na Bíblia, ao Príncipe da paz opõe-se o «príncipe deste mundo» que, semeando a morte, actua contra o Senhor, «amante da vida». Vemo-lo actuar em Belém, quando, depois do nascimento do Salvador, se verifica a matança dos inocentes. Quantas matanças de inocentes no mundo! No ventre materno, nas rotas dos desesperados à procura de esperança, nas vidas de muitas crianças cuja infância é devastada pela guerra. São os pequeninos Jesus de hoje, estas crianças cuja infância é devastada pela guerra, pelas guerras.
Deste modo, dizer «sim» ao Príncipe da paz significa dizer «não» à guerra, a toda a guerra, à própria lógica da guerra, que é viagem sem destino, derrota sem vencedores, loucura indesculpável. Mas, para dizer «não» à guerra, é preciso dizer «não» às armas. Com efeito, se o ser humano, cujo coração é instável e está ferido, encontrar instrumentos de morte nas mãos, mais cedo ou mais tarde, usá-los-á. E como se pode falar de paz, se cresce a produção, a venda e o comércio das armas? Hoje, como no tempo de Herodes, as conspirações do mal, que se opõem à luz divina, movem-se à sombra da hipocrisia e do escondimento. Quantos massacres armados acontecem num silêncio ensurdecedor, ignorados de tantos! O povo, que não quer armas, mas pão, que tem dificuldade em acudir às despesas quotidianas, ignora quanto dinheiro público é destinado a armamentos. E, contudo, devia sabê-lo! Fale-se disto, escreva-se sobre isto, para que se conheçam os interesses e os lucros que movem os cordelinhos das guerras.
O profeta Isaías deixou escrito que virá um dia em que «uma nação não levantará a espada contra outra»; um dia em que os homens «não se adestrarão mais para a guerra», mas «transformarão as suas espadas em relhas de arado e as suas lanças em foices». Com a ajuda de Deus, esforcemo-nos para que se aproxime esse dia! Isto foi proclamado para toda a gente, crentes e não crentes.
2. Nas felicitações de Natal aos cardeais, Bergoglio lembrou que, à distância de sessenta anos do Concílio, ainda se debate sobre a divisão entre «progressistas» e «conservadores», mas esta não é a diferença. A verdadeira diferença é entre «apaixonados» e «rotineiros». Esta é a diferença. Só quem ama, pode caminhar.
Termina, dizendo que o Senhor Jesus, Verbo Incarnado, nos dê a graça da alegria no serviço humilde e generoso. E, por favor (vo-lo recomendo!), não percamos o humor, que é saúde! E pede para rezarem por ele diante do presépio.
Bergoglio escolheu o nome de Francisco para que a orientação de todo o seu pontificado nunca se desviasse da espiritualidade de S. Francisco de Assis. Para ele, o Presépio é como um Evangelho vivo que transvaza das páginas da Sagrada Escritura. Ao mesmo tempo que contemplamos a representação do Natal, somos convidados a colocar-nos espiritualmente a caminho, atraídos pela humildade d'Aquele que Se fez homem a fim de Se encontrar com toda a humanidade e a descobrir que nos ama tanto, que Se uniu a nós para podermos, também nós, unir-nos a Ele e ao seu caminho[1].
Devemos agradecer ao Papa o ter alargado o tempo de preparação da última fase do Sínodo para que tenhamos, cada vez mais, lideranças apaixonadas, nas comunidades cristãs, para superar as rotineiras que não andam nem deixam andar.
3. Por iniciativa de Paulo VI, o primeiro dia de Janeiro de cada ano é dedicado à reflexão, aos protestos, aos movimentos que procuram despertar os cristãos para as formas de dizer não à guerra e descobrir caminhos de paz. O impacto dessas Mensagens depende muito do que elas provocam, a nível mundial, segundo os problemas de cada país e as movimentações e acções que suscita. Não podemos esquecer, por exemplo, a importância clandestina e pública que tiveram na denúncia das nossas guerras coloniais.
Para não se cair na rotina destes Dias Mundiais, é importante estar atento aos problemas da guerra e da paz, segundo as situações mais problemáticas de cada época. Não basta pensar nas circunstâncias de cada país porque, mais uma vez, a Fratelli Tutti obriga a tomar, como próprios, os problemas de toda a humanidade. Esta dimensão universal está bem destacada na Mensagem para 2024, que intitula Inteligência Artificial e Paz. Poderá parecer que se trata de um assunto limitado e abstracto. Pelo contrário, está a afectar a vida de todos de várias maneiras:
«No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz».
O progresso da ciência e da tecnologia deve servir a paz e não a guerra que é devastadora. Como diz o Papa, a imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder. Por isso, temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do ser humano e da comunidade.
O Papa insiste que «a dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade, que nos une como membros da única família humana, devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso».
Entramos no novo Ano com velhas e novas incertezas políticas, sociais e eclesiais. As autênticas formas de escutar e acolher os gritos do Papa serão novas iniciativas para vencer, em 2024, as expressões que se tornaram rotineiras e perderam a capacidade de nos fazer acreditar que podemos mudar.
Façamos um ano mais feliz!
31 Dezembro 2023