Aqueles títulos históricos, essenciais para a construção continuada de uma sociedade pluralista, conhecedora, livre e democrática em Portugal, foram abocanhados por um fundo misterioso com sede nas Bahamas.
Em "O Diabo veste Prada", Meryl Streep encarna uma guru da moda – mulher sofisticada e implacável, ambiciosa e sem qualquer empatia, cuja palavra é lei e não admite contemplações. O filme (e o livro antes dele) é baseado numa pessoa real: a conhecida Anna Wintour, à data editora da revista Vogue, hoje promovida a chefe criativa do poderoso grupo Condé Nast (publicações especializadas sobre marcas de luxo, presente em 32 grandes mercados, incluindo França, Alemanha, Itália ou Espanha).
Pois bem, duas décadas depois do filme, Anna Wintour voltou à ribalta graças aos adereços que utiliza. Tudo começou numa quarta-feira à tarde quando os jornalistas de um dos sites mais visitados do grupo, a mítica Pitchfork (sobre música moderna), receberam um seco email: reunião imediata e obrigatória de 15 minutos com a directora.
E nessa sala de reuniões com pálida luz artificial, a suposta fã da marca Prada foi fiel à personagem: manteve-se sempre de inescrutáveis óculos escuros enquanto, impassível, ia dizendo a cada pessoa à sua frente que a Pitchfork vai desaparecer e que estavam todos despedidos a partir do dia seguinte.
Uma multinacional vampiresca olha para um trabalho bem feito, uma organização construída com labor e savoir faire, popular e moderadamente lucrativa. E diz: quero aquilo. Compra. Brinca um bocadinho com o novo brinquedo, perante o temor de quem verdadeiramente o ama.
Na verdade, o único ponto relativamente original desta história são mesmo os óculos escuros.
O resto é uma narrativa repetida, cansativa. Uma multinacional vampiresca olha para um trabalho bem feito, uma organização construída com labor e savoir faire, popular e moderadamente lucrativa. E diz: quero aquilo. Compra. Brinca um bocadinho com o novo brinquedo, perante o temor de quem verdadeiramente o ama. Esse temor confirma-se, porque o abutre rapidamente se farta; e corta, e despede, e destrói, e vende o cadáver aos pedaços. A multinacional embolsa o produto da venda dos bocados bons – dinheiro imediatamente desaparecido em algum opaco paraíso fiscal – e o ciclo está pronto a recomeçar com uma nova presa, perdão, empresa.
O Jornal de Notícias também já caiu nas garras destes abutres. E o Diário de Notícias também. E a TSF, O Jogo e até o Açoriano Oriental, fundado em 1835, o mais antigo jornal português e um dos mais antigos do mundo.
Ainda é possível viver sem sites que falam de música – mas é bem mais grave fazê-lo sem uma comunicação social credível e independente. Aqueles títulos históricos, essenciais para a construção continuada de uma sociedade pluralista, conhecedora, livre e democrática em Portugal, foram abocanhados por um fundo misterioso com sede nas Bahamas. O actual CEO, José Paulo Fafe, conta candidamente como vendeu a alma ao diabo: "Uma pessoa amiga, ligada ao mundo financeiro, disse-me: (…) no outro dia estive com uns tipos ligados a um fundo, na Suíça, que iam investir no Leste, no sector dos media e digital, e com esta confusão [guerra da Ucrânia] não foram para lá. Porque é que não vai falar com eles?"
Fafe foi. Pouco depois, o World Opportunity Fund comprou uma parte relevante da sociedade portuguesa, juntamente com os destinos de centenas de trabalhadores e das suas famílias. É pena que isto seja totalmente secundário para estes investidores – várias vezes referenciados nos Paradise Papers e nos Bahamas Leaks – interessados. sim, em liquidar activos mais tangíveis. Os trabalhadores estão há quase dois meses sem receber salários nem subsídios de Natal. Os jornais e a rádio já passaram dias sem dar notícias. E o panorama apresenta-se negro.
Sem informação não é possível tomar boas decisões. Sem informação, sem jornalismo de investigação, sem debate, pluralidade de opiniões e busca de soluções, estamos todos mais pobres. A sociedade atrofia, a democracia definha. Mas este dilema vai muito para além dos media, porque o "capitalismo do desastre" ataca em todo o lado. Enquanto for mais fácil destruir que construir, enquanto for mais lucrativo liquidar que criar valor, os abutres vão vencendo – e nós estamos uns segundos mais próximos da meia-noite.