Newsletter de Março de 2024 Texto de Carlos J. Pessoa O recreio da polémica e o rock and roll Passos na Floresta é um espetáculo imperdível; porque perdermo-nos nele é fundamental, como reagir à perda, na constatação de erros, falhas, responsabilidades, sem perder de vista ser livre, ser melhor, ser irmão, amigo, cúmplice, amante. Tudo neste espectáculo remete para o ideário da Garagem: a iniciativa, o desejo de resolução, de compromisso. Falando das personagens: Maybe Tenderness é o coração partido, a Bela Adormecida que não vai acordar, o vagabundo dos sonhos iludidos, Gerard Philippe perdido na memória do cinema; Jean Renoir magnânimo, carinhoso numa ternura de chorar a sorrir, como Anna Magnani a despedir-se de Fellini em Roma, Cidade Aberta: "ciao Federico!" E fecha a porta devagar. Ozymandias é a História, que da areia do deserto resgata heroínas sem nome, o peso do silêncio, Peter O'Toole a dizer sonetos de Shakespeare, Mary Shelley a "defender a poesia" enquanto Percy escreve o Frankenstein, num erro deliberado, numa provocação : a grande Aretha Franklin de novo a cantar Nessun Dorma, e o Coro, um bálsamo de sins, sins, sins , serem pãezinhos a cair do céu na fome de Moisés. A personagem Veríssimo vem do Betão de Thomas Bernard, do Quarteto para Helicópteros, de Karlheinz Sctockausen, do 11 de Setembro, de foder e estar lixado, numa Fuga sem Fim, de Roth; Joseph numa longínqua invocação de um palheiro: seria Jerusalém, Marrocos, Monty Python, Morávia, Odessa? Tinhas os olhos azuis, castanhos, como te engoliu o deserto? Uma cheia súbita que te afogou, não foi Isabelle? Takemitsu que te fez encontrar as palavras para as cenas mudas do Ran, o Lear de Akira Kurosawa. Da personagem Évoramonte tenho uma epopeia de alentejos: de Manuel da Fonseca a D. Quixote, a Orson Wells diante de Chartres; da catedral de Joana D' Arc à música do conjunto António Mafra, passando por Feldman , Rothko, Linda de Suza, o Bosch de Veneza, Grimani; de Sex Pistols a Martin Codax, do Ondas do Mar de Vigo. Tanta vastidão Penélope, tanto Lelé, meu Telémaco, a esvaires-te , a esvaires-te. "É isto a morte, pai? A morte nunca é doce." Da personagem Gonçalo que morres a cada segundo que passa, nos teus músculos de santo maneirista: Pontormo, Parmigianino, Pasolini. De Pompeu coluna em Alexandria, de Sida, teres morrido Gonçalo, florido, talvez, Konstantinus Kavafis; nunca mais dançando e ainda assim, por quietude, a lap dance perfazer-se em volta de um varão de soro. Durrell, ilhas, um Hamlet espectral, de tão ostensivo, bruto, feio na esteira de condenados em Alcatraz ou de Friedkin, algures na América do Sul, a transportar num camião, por caminhos enlameados e íngremes, nitroglicerina. Que nunca te expluda o coração que a alma livre torna tudo mais fácil: de amar a beber cervejas. Mudando de assunto: O Dayligth tem isso de ser uma Escola de Primavera, Spring School, a vocação da Garagem para aprender ensinando, criando oportunidades de aprendizagem, entre gente muito diferente , de países e culturas tão dispares que dar a mão fica fácil, fica fácil a compaixão diante de um desconhecido; fica fácil depois da experiência de lidar com desconhecidos, perceber as dificuldades conhecidas, e não arredar pé das convicções, mesmo seguindo a maré, de quem chega e parte, reconhecendo que a vida continua para melhor. Ao chorares o fim do universo estás a alegrar-te com os infinitos detalhes de tudo; e com essa curiosidade de criança, renasces para o recreio da polémica e do rock and roll que te anima. |