Newsletter de Agosto
Texto de Carlos J. Pessoa
Para um balanço, na vilegiatura de Agosto
Acredito melhor no trabalho da Garagem; essa convicção resume o que quero partilhar convosco: de alegria, empenho e criatividade vibrante,
focada nos objectos artísticos; os nossos e os dos outros.
Durante anos recentes senti o exercício da arte teatral como um jogo de cintura, uma gestão mais ou menos perspicaz de circunstâncias, fossem elas de produção ou de dinâmica do trabalho colectivo; de traduzir do acaso as oportunidades para uma cena boa, porventura feliz.
Hoje em dia podemos retomar na Garagem um momento primordial de invenção e rasgo, que não se cinje a circunstâncias, convocando antes uma universalidade desprendida, latente, pujante nas suas possibilidades de leitura, imaginação, rasgo cénico e interface crítico.
A Garagem passou no ano de 2023/24 por mutações extraordinárias.
Glocalizou-se.
Dito de outro modo , tornou-se global sem deixar de ser local; não deixou de albergar uma urbanidade híbrida, uma paisagem que se dilui por espaços citadinos e lugarejos de periferia; simultaneamente evocando uma matriz clássica, de evocação e recitação, assim como a advertência, o humor corrosivo e o propósito fundacional.
A Garagem saiu de si, viajou, escutou novas gerações e actores, outras geografias, outras realidades, outras culturas.
Ungiu-se de compromissos, de cumplicidades, que a tornam um projecto global, dos tantos mundos de um mundo, por vezes imundo, e por isso mesmo desafiando os limites do nosso conhecimento, bem como a missão de encorajamento e saúde, cívica e pessoal.
O Teatro da Garagem saiu de si para cair melhor em si, para tropeçar e bailar nas suas quedas, nos seus avanços repentinos, nas suas deslocações, por vezes intercontinentais .
A Garagem reconhece-se nessa festa sem soberba, nesse modo de ser, um certo estilo ocidental, português, de querer ser semelhante, de semelhar-se sem imitar ou impor.
A Garagem que frutifica nestas correspondências, seja na Suíça, em Itália, Angola, Cabo Verde, Letónia, Turquia, Grécia, Brasil, Beringel, Porto, Évora, Lisboa é uma Garagem de inscrição leve, uma Garagem que levita e se afirma como lugar de invenção cénica e escola para tanta gente, a começar pela nossa própria aprendizagem.
Bem haja tudo e todos: dos Clubes de Teatro , à Universidade Sénior, do Café da Garagem às escolas e museus nossos parceiros , das Juntas de Freguesia, de Santa Maria Maior e Beringel, à Câmara Municipal de Lisboa, ao Estado Português na figura da DGArtes, passando pelo aplauso anónimo de quem diz "bravo, bravo" num exercício final da Escola Superior de Teatro e Cinema, por nós dirigido no Taborda,
o " On Air, 24 horas na vida de uma rádio"; talvez o melhor exemplo recente da heterodoxia garagiana.
Um "viva, viva" e a tudo e a todos, que decorre de compromissos e responsabilidades, do carinho e zelo institucional, da hospitalidade conseguida nos acolhimentos tantos; um "viva, viva a Garagem" que decorre das geografias físicas diversas que aportam tantos mundos do mundo, permitindo-nos retomar a geografia íntima, que nos diz.
Temo-nos, na Garagem, através dessa afirmação de um modo de estar no teatro que não se compadece com arrivismos fáceis , que se mantém no caminho estreito e optimista, que desemboca na largura da fraternidade, do consolo e da lucidez.