A DESCOBERTA DO CAMINHO MARÍTIMO PARA O CARREGADO CARTA DE FEVEREIRO DE CARLOS J. PESSOA
A Descoberta do caminho marítimo para o Carregado é uma história épica de contornos estranhíssimos, que merece a nossa atenção neste mês de Fevereiro, em que o Teatro da Garagem continua a sua senda artística e se prepara para lançar o seu próximo espetáculo.
Esta promissora criação heteróclita congrega clássicos com abastecimento de gasóleo simples, canções pop com unguentos para a pele; douradinhos, mercearia e fruta fresca com vídeo arte; danças latinas com promoções do dia; análises ao sangue e à urina com solilóquios ao entardecer e, por fim, combinações do Juízo Final com experiências idiossincráticas do fim do mundo, bem como do fim do juízo.
Tudo isto, contudo, é obnubilado pela Descoberta do caminho marítimo para o Carregado, proeza imperial, para não dizer imperialista, que rasga de alto a baixo os triunfos da história marítima.
Neste ponto recomendamos vivamente a Crónica do descobrimento e da conquista da Guiné, por Gomes Eanes de Zurara, na versão de 1989 da editora Europa-América, bem assim como o cd Kaira, de Toumani Diabaté, esse virtuoso mestre da kora, que nos embala por viagens inesquecíveis, confusamente deliciosas entre o sofá e o sifão, nas curvas e contracurvas da história, da fantasia e de uma garrafa de óleo Fula.
E é assim que, no remanso do inverno, nos permitimos espreitar a melancolia e o partir o coco a rir, sem ser necessariamente esta a ordem de entrada. Na Garagem dos alvitres de Fevereiro tudo é permitido, a começar pela Descoberta do caminho marítimo para o Carregado protagonizada pelo muy corajoso e valente Sr. Santos no ano da graça de há 3 anos.
Sim, a Descoberta do caminho marítimo para o Carregado é um facto inédito e pouco ou nada conhecido dos média e das redes sociais; teve que ser a newsletter da Garagem a dar conta do assunto, senão nada! Ninguém se lembraria de pegar nele.
Mas a Garagem lembrou-se, porque entende que importa contar a jornada marítima extraordinária do Sr.Santos, entre a Guiné-bissau e o Carregado, numa piroga com 116 pessoas. Tudo se passou em 9 dias. Um recorde mundial para uma piroga.
Antes de esmiuçar o recorde (trabalho que deixamos para os analistas), temos de sublinhar a pertinência de recomendação da obra cinematográfica, ainda não realizada, sobre a vida e obra do frade jesuíta Athanasius Kircher, esse precursor do pré-cinema que é uma coisa que não se sabe bem o que é.
Por amor de Deus façam um filme sobre o homem!
Athanasius Kircher, o homem que explica tudo de uma maneira extravagante e bizarra, entenda-se bizarro no sentido de valente e corajoso.
Athanasius, esse alemão romanizado, adoraria conhecer o Sr. Santos, mas o destino trocou as voltas a ambos, e dizemos com convicção que adoraria, por este ter conseguido colocar 116 almas numa piroga e fazer a viagem entre Bissau e Lisboa com escala em Tenerife. O detalhe começa em Tenerife mas podia ser no hipotálamo de um coiote.
O que Athanasius Kircher não poderia adivinhar, seriam os contornos rocambolescos da chegada ao Carregado.
Primeiro porque um irmão do Sr. Santos já habitava nessa terra de gente varonil; ora esse argumento muito pesou nas atribulações alfandegárias que poderiam ter recambiado o Sr. Santos mais a piroga e as 116 almas, que entretanto se tinham acostumado a seguir o Sr. Santos para todo o lado.
Isto dá ao assunto da Descoberta do caminho marítimo para o Carregado um peso, um tanto ou quanto assustador, já que carregado, à partida e no destino final, de mistério e revelações de ordem sobrenatural, até ver.
Bem chegados à barra do Tejo, o Sr. Santos e os 116 continuaram rio acima até à confluência com o Zêzere, escapando a inúmeras dificuldades dignas de uma escapadinha até à praia de Carcavelos, para ver o filme dos barcos ao longe.
Após o Zêzere, e muito baralhados quanto à localização exacta do Carregado, o Sr. Santos e as alminhas atraídas, meteram-se com a piroga pelo rio Alenquer. Por fim, feita a acostagem, decidiram empurrar à força de bracinhos a piroga, estrada municipal acima, que deslizou sobre
tubos galvanizados de 6 polegadas até ao Carregado, dando um brilho especial à coisa.
Aí chegados, os intrépidos improváveis desta nova gesta, desmontaram a piroga e aproveitaram a madeira e os tubos galvanizados, num gesto de sustentabilidade responsável e respeito pelo ambiente, seja ele qual for, para fazerem um abarracamento de migrantes no Carregado.
Esta nova Jerusalém carregada de Santos, já que o Sr. Santos além de Santos é Senhor, revelou-se um ímã de desenvolvimento palatável, isto é, come-se e bebe-se muito nos restaurantes da região à custa desta força de trabalho.
Seria caso para inferir que da sobredita jornada rezará a história; só que a história é ateia e muito dada a contrariedades de todo o tipo; deste modo o melhor a fazer é concluir, correndo o risco de saturar o argumento, que Santos da casa não fazem milagres e que, por isso mesmo, na falta dos mesmos, a Descoberta do caminho marítimo para o Carregado é uma história absolutamente real, de uma pessoa real com todos os ingredientes para pasmar, quer santos, pecadores ou só gente gira.
E como se conta a realidade? Com aritmética ou uma auto-confiança inabalável? Talvez ambas.
O Sr. Santos é um jovem guineense de 25 anos, que ainda não tem filhos, mas já guiou 116 almas. Forte como um touro, diligente como uma bazooka, este migrante da Guiné-Bissau contra todas as lógicas, desafia o tamanho dos montes de entulho das obras públicas e privadas, limpando os quintais e logradouros atulhados. Enfim os escombros da civilização.
Faz o trabalho em meia dúzia de horas, melhor que um caterpillar, à custa de técnica artesanal,
um sorriso com qualquer coisa de pintassilgo contente, música de kora nos head-phones e todas as laranjas e limões que eu tinha no quintal.
É verdade: mamou tudo, laranjas, mesmo as que ainda estavam verdes, e limões. Tudinho!
Uma espécie de poção mágica?
Não sejamos ingénuos. É possível e de bom-tom encontrar sempre uma explicação razoável para os fenómenos, incluindo o apetite insaciável do Sr. Santos por citrinos: sabe-se que o escorbuto é um mal que ataca os marinheiros e é causado por falta de vitamina C.
C de Carregado.
Boa viagem!