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quinta-feira, 23 de maio de 2024

Repasto: A propósito dos 50 anos de Abril, brincamos dizendo coisas sérias

Na Revista Gerador 43, na crónica Repasto, que agora partilhamos contigo, Manuel Luar fala-nos sobre as memórias e reflexões em torno dos 50 anos do 25 de Abril, evocando histórias do passado e questionando sobre o significado da liberdade nos dias de hoje.
Opinião de Manuel Luar
Ilustração de André Carrilho

Iniciam-se as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Data que foi vivida por quem, à data, já respirava e pensava alto, mas cada um à sua maneira.
Em minha casa, na agenda de bolso da minha Mãe – normalmente utilizada para assentar as consultas médicas e pouco mais –, a informação para esse dia é muito lacónica, mas, ao mesmo tempo, radiante: «Acabou o Fascismo.»
E mais nada.
Começo esta conversa com uma citação de um artigo notável de meu mestre Vasco Pulido Valente, escrito no jornal Público em 2014:
Ao ouvir falar os nossos políticos de hoje damo-nos conta que ninguém parece ter vivido os tempos de fome e desespero que duraram muito mais de 40 anos, durante a República de Salazar e de Caetano.
O Portugal de hoje não conseguiria nunca perceber o Portugal de 1950 ou de 1960. Nem decerto lhe descreveram o deserto que foi Lisboa nessa época de chumbo, onde ir ao café ou a um cinema de "reposição" tomavam as proporções de um acontecimento.
A pobreza contaminava tudo. O que se vestia, o que se comia, o que se fazia, o que se pensava. Mais do que na gente que mandava no Estado e no cidadão comum, a tirania estava na necessidade de poupar, na privação perpétua da frivolidade e do prazer, no mundo imóvel e sem saída, que pouco a pouco se tornava numa prisão a céu aberto.
Este assunto recorda-me uma história do Tio Santidade, personalidade da minha Serra da Estrela, cuja vida dava um filme e que tinha, como uma das particularidades do seu temperamento, um ódio profundo à água canalizada (ou não) para beber e para se lavar.
O velho Tio Santidade ficava imperturbável quando ouvia as vizinhas aos berros, a queixarem-se de que «ia faltar a água». Dizem que encolhia os ombros, sorria e andava para a frente empurrando as cabras.
Água? Água era coisa que o Tio Santidade só bebia se misturada no vinho (sem ele saber). E, para banhos, acho que dela se servia uma vez por ano, na Páscoa da Ressurreição, logo de manhã, e isto quando o compasso lá ia a casa…
Porque, quando acabou esse velhíssimo hábito da visita pascal, o Tio Santidade terá também, por falta de utilidade e com medo de se constipar, acabado com a ideia do banho anual. Morreu como os outros, mas aos 90 anos, e para quem fumava um maço de «3 vintes» por dia, e bebia, também por dia, meio garrafão até às oito da noite, e o outro meio entre as oito e a meia-noite, até que não foi «convocado» muito cedo…
Leva-nos a pensar se não metemos demasiada água na nossa vida atual…
Também é verdade que a neta, sem ele saber, lhe batizava recorrentemente o conteúdo do velho garrafão, levando-o a maldizer com palavras feias o taberneiro fornecedor.
Quando o Tio Santidade já nem via pela violência da «tosga», quem se lixavam eram as cabras que lhe pertenciam… Ficavam toda a noite sem ser mungidas por muito que berrassem.
Por vezes, e mais sóbrio (o que era raro), contava «estórias do tempo da miséria». Segundo aquela autoridade, naqueles tempos um pobre devia andar sempre com duas coisas no bolso da jaqueta surrada: um copo de madeira ou de alumínio (para não partir) e… um ossito de borrego.
O copo era para beber «à espicha» nalguma adega que encontrasse com a porta mal fechada, encostada. E o osso era para cheirar antes de beber. Com o cheiro da carne do borrego (já «falecido»), o vinho sabia-lhe melhor.
O Tio Santidade (que ainda viveu o 25 de Abril) gostava de terminar a sua parábola com a frase: «Hoje, já não há pobres como antigamente! Ainda bem, porque as portas das adegas já não são de madeira carunchosa e têm todas fechaduras de jeito…»
E recordava ainda como era feita a «resistência» ao poder dos tiranetes locais nos tais anos de chumbo, entoando um provérbio (beirão?): «Pão bolorento, pouco vinho e vinagrento, sardinha salgada? Cava tu Enxada!»
A vida do homem «rico» da aldeia, que criava dois ou três porcos para vender, comprava queijo aos pastores para comercializar em Viseu e tinha algumas terras para batatas e vinho, devia parecer aos pobres de então tão «opulenta» como hoje nós consideramos a vida de algum português a passar as férias de verão ao largo de Ibiza num iate Ascari alugado com tripulação.
É a distinção entre o «relativo» da vida (das vidas) que nos faz ser mais otimistas ou pessimistas no dia a dia de trabalho e de lazer.
Uns (equipa de que faço parte) dirão sempre nas circunstâncias mais maçadoras: «Podia ser pior…»
Nos 50 anos do 25 de Abril, vai falar-se mais uma vez de «liberdade» em praticamente todos os discursos da circunstância.
O que é a Liberdade? Muito melhor do que eu Edmundo Bettencourt a descreveu no seu poema «Ar Livre»:
Enquanto os elefantes pela floresta galopavam
no fumo do seu peso,
perto, lá andava ela nua a cavalgar o antílope,
com uma asa direita outra caída.
E a amazona seguia…
e deixava a boca no sumo das laranjas.
Os olhos verdes no mar.
O corpo em a nuvem das alturas
– a guardadora
da sempre nova faísca incendiária!
Edmundo Bettencourt – Antologia Poética
- Sobre Manuel Luar -
Manuel Luar é o pseudónimo de alguém que nasceu em Lisboa, a 31 de agosto de 1955, tendo concluído a Licenciatura em Organização e Gestão de Empresas, no ISCTE, em 1976. Foi Professor Auxiliar Convidado do ISCTE em Métodos Quantitativos de Gestão, entre 1977 e 2006. Colaborou em Mestrados, Pós-Graduações e Programas de Doutoramento no ISCTE e no IST. É diretor de Edições (livros) e de Emissões (selos) dos CTT, desde 1991, administrador executivo da Fundação Portuguesa das Comunicações em representação do Instituidor CTT e foi Chairman da Associação Mundial para o Desenvolvimento da Filatelia (ONU) desde 2006 e até 2012. A gastronomia e cozinha tradicional portuguesa são um dos seus interesses. Editou centenas de selos postais sobre a Gastronomia de Portugal e ainda 11 livros bilingues escritos pelos maiores especialistas nesses assuntos. São mais de 2000 páginas e de 57 000 volumes vendidos, onde se divulgou por todo o mundo a arte da Gastronomia Portuguesa. Publica crónicas de crítica gastronómica e comentários relativos a estes temas no Gerador. Fez parte do corpo de júri da AHRESP – Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal – para selecionar os Prémios do Ano e colabora ativamente com a Federação das Confrarias Gastronómicas de Portugal para a organização do Dia Nacional da Gastronomia Portuguesa, desde a sua criação. É Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana.
Texto de Manuel Luar
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