Luís de Barreiros Tavares in Revista Caliban issn_0000311 ∙ 15 min read ∙ View on MediumBernardo Soares e tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos"O frescor da manhã / no Rossio / tudo ressoa a ti / e eu penso como tu Pessoa / meu mestre / eivado de luxúrias de pensamento / pedinte como eu / quotidiana poesia parindo / e o resto, moribundo, só Lisboa…" Manoel Tavares Rodrigues-Leal — poema de 1987 À memória do Carlos Trigo e do Lino, dois vadios que me citavam Pessoa "A unica arte verdadeira é a da construcção." Livro do Desassossego "Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara." Carlos Drummond de Andrade "É um livro feito por bocados, peças. Um livro que eu próprio não consigo organizar." Eduardo Lourenço 1. Intervalos e fragmentos "O meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do Desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos" (Pessoa em carta a Armando Côrtes-Rodrigues — Lisboa, 19 de Novembro de 1914 (PESSOA, 1986: 24)). Os fragmentos permitem ao leitor uma espécie de leitura ou colheita aleatória. Permitem saltitar, depenicar, debicar aqui e ali, empregando algumas metáforas dos pássaros e dos passos ou do caminhante (o que deambula, vagueia, etc.). Os fragmentos são sempre pequenas partes do possível Livro, umas mais extensas, outras menos. Mas sempre pequenas partes, como a própria etimologia de "fragmento" indica. Do latim, "fragmento" (fragmentum) provém, entre outras acepções, de frangĕre (v. tr. partir, quebrar, esmigalhar…), reenviando, por exemplo, para estilhaço, lasca, caco. E podemos saltitar, se quisermos, deambular, ou perambular, por assim dizer, conferindo múltiplos percursos, independentemente da estrutura editorial. Pois, "qualquer arranjo gráfico dos fragmentos de Pessoa será sempre uma invenção editorial" (MEDEIROS, 2015: 84). Por isso, lemos o Livro num potencial, ou melhor, num virtual vaivém, numa leitura infinita. E não é o trabalho de busca e pesquisa um saltar atentamente aqui e ali? Consideremos duas passagens, duas leituras sobre intervalos e fragmentos. Uma de José Gil, outra de Paulo de Medeiros: 1. "O que é o Livro do Desassossego? Uma viagem permanente através dos intervalos entre sensações; entre estas e as coisas; entre a sensação do eu e a da vida exterior. A viagem é permanente porque nunca o leitor tem a impressão de uma ruptura entre os fragmentos — os espaços que os separam pertencem à cadeia dos intervalos que separam os próprios fragmentos, são pequenas ou grandes respirações num contínuo de que emana o mesmo tom com múltiplas variações de ritmo." (GIL, 2013: 93 e 94). 2. "Onde há fragmentos, há também intervalos. E o Livro do Desassossego incessantemente chama a atenção para o intervalo quer como dispositivo textual quer como espaço de suspensão, do texto, do pensamento, do sentir e do ser: 'Nuvens… Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.'" (PESSOA, 2014: 332 e MEDEIROS, 2015: 82). Na leitura de Gil, não só há fios de relações que se entretecem entre os fragmentos ("nunca o leitor tem a impressão de uma ruptura entre os fragmentos"), mas uma respiração ou "respirações" no conjunto alternante dos intervalos ("os espaços que os separam pertencem à cadeia dos intervalos que separam os próprios fragmentos"). Digamos que é uma malha, uma tessitura — ou estrutura espacial e temporal, se quisermos — que entrelaça a sequência dos fragmentos e dos intervalos entre eles, etc. Um "contínuo de que emana o mesmo tom com múltiplas variações de ritmo." Em Paulo de Medeiros há "o intervalo quer como dispositivo textual quer como espaço de suspensão, do texto, do pensamento, do sentir e do ser". Há intervalos entre os fragmentos e há intervalos na própria narrativa, no pensamento, sentir e ser no texto: "Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim". Duas interessantes leituras. Mas ambos sustentam uma alternância de base: fragmentos/intervalos. Todavia, diria que não se trata só de sustentar que "os espaços que os separam [os fragmentos] pertencem à cadeia dos intervalos que separam os próprios fragmentos" (Gil). Nem apenas de jogos alternativos entre fragmentos e intervalos: "Onde há fragmentos, há também intervalos" (Medeiros). Diria que não há só o intervalo como "espaço de suspensão, do texto, do pensamento, do sentir e do ser" do narrador (Medeiros). Proponho uma outra leitura. Podemos saltitar nos — dentro dos — próprios fragmentos. Há também intervalos neste saltitar aleatório. Pode ler-se o fragmento em diagonal, obliquamente. A leitura em diagonal pode ser feita em qualquer livro, geralmente é uma espécie de leitura preliminar do todo. Esta leitura é, precisamente, um deambular, ou um sobrevoo. No entanto, no Livro do Desassossego, ela é imanente, e desmultiplica-se nos próprios fragmentos. Tal como podemos passear num livro, podemos passear num fragmento e dentro dos próprios fragmentos do L. do D. E neste passear, deambular, saltitar num mesmo fragmento, estruturam-se também leituras com intervalos. Há como que, virtualmente, fragmentos nos fragmentos. A etimologia de "intervalo" reenvia, no latim (inter-vallum), para distância de espaço ou de tempo, entre outros sentidos. Quando o fragmento é de tal maneira curto, como poderemos deambular nele? Neste caso, talvez ele mesmo possa ser considerado um intervalo; um intervalo entre os intervalos e os fragmentos. Começamos num fragmento e podemos desligar à terceira linha, por exemplo. No deambular num fragmento, salta-se em seguida para outro. Os intervalos nos fragmentos traçam-se ocasionalmente nos saltos. Procuramos passos num fragmento. De súbito, um fragmento pega. Até poderemos ler um fragmento às arrecuas, por assim dizer. Qual é o texto que não tem falhas, lacunas, aberturas, intervalos? Em suma, qual o texto sem aberturas possíveis, quer pelas faltas, os buracos de o que não está lá, quer pelas potencialidades de outros caminhos? Mas o Livro apela, como poucos ou mais nenhum, a esta experiência de leitura. Não só um work in progress, como refere Jerónimo Pizarro no prefácio ao Livro do Desassossego (PESSOA, 2014: p. 15), mas também uma abertura que se multiplica em múltiplas aberturas e entreaberturas, se assim se pode dizer; como se o texto virtualmente fendesse, estalasse, gretasse. Como se pudéssemos então falar de um Caos. 2. Caos Mas que Caos é este? O caos do Livro do Desassossego — de que tanto se fala — manifesta-se, precisamente, nessas aberturas e entreaberturas. "Caos" reenvia originariamente e etimologicamente para um abrir ou um ligeiro entreabrir de boca, um bocejo ou um gesto espacial como esboço expressivo ou emissor de um som, um balbuciar para uma voz e, talvez, para a palavra. O nome "Caos" tem origem grega (Χάoς) e "deriva da raiz χα", que significa "abertura, hiato, bocejo" (Kirk e Raven, 1982: 20). Ele indicia aquelas outras acepções. Mas caos, como hiato, também pode ser abismante; tal é o "Abysmo", "[a "Morte"] forma do Chaos incomprehendido" (PESSOA, 2014: 131). Mas abertura do Livro do Desassossego constitui-se e multiplica-se na malha ou tessitura das múltiplas aberturas e entreaberturas: a complexidade das relações de fragmentos e intervalos (ver parte 1). De facto, mais do que mera ou total desordem — como em geral se entende o caos –, nele se inscreve uma espécie de estrutura em aberto. Um sentido para qualquer coisa. Também o "Chaos de quem verdadeiramente somos filhos" (PESSOA, 2014: 211). Ou, talvez, uma passagem a algo, um trânsito entre o sono, o despertar, a vigília, o sonho e a realidade. E aqui o Livro do Desassossego tem lugar. Por isso, caos não está — e não indo para outros âmbitos teóricos que não têm aqui cabimento — , completamente separado de Cosmos (do grego κόσμος: ordem, organização, etc.). Daí a importância das questões da variedade e possibilidade das organizações editoriais do Livro, das múltiplas análises acerca dos fragmentos e intervalos nas suas relações, das deambulações da leitura, etc. Frame do filme "Pessoa, persona, pessoa como eu". Escultura de Pessoa, por Lagoa Henriques. "E mestre F[ernando] Pessoa como soas. / E convido-te à mesa da 'Brasileira'. Ó Fernando somos quase / contemporâneos: e louco, uma bela e delicada loucura." Manoel Tavares Rodrigues-Leal—de um poema de 1976. 3. Escrever e assistir Na introdução ao Livro do Desassossego, Richard Zenith alude aos múltiplos autores e livros: Se Pessoa se dividiu em dezenas de personagens literários que se contradiziam uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Livro do Desassossego também foi um multiplicar-se constante, sendo muitos livros atribuídos a vários autores, todos eles incertos e vacilantes, como o fumo dos cigarros através do qual Pessoa, sentado num café ou à sua janela, olhava a vida que passa. (PESSOA, 2011: 14). "Nada mais quero da vida senão o assistir a ela. Nada mais quero de mim senão o assistir à vida." (de "O Amante Visual" em PESSOA, 2014: 127). Escrever e assistir confundem-se. E o deambular é múltiplo. Na leitura, Soares lê-se a ele mesmo: "livro que se me folheia na alma"; na escrita, Soares escreve-se: "Que me pesa que ninguem leia o que escrevo? Escrevo-me para me distrahir de viver, e publico-me porque o jogo tem essa regra" (PESSOA, 2014a: 378). E deambula no caminhar, no residir, no café, à janela, no escritório, no pensamento. Talvez o próprio desassossego do Livro seja, muitas vezes e paradoxalmente, um deambular calmo, pairante e planante. "O meu estado de espírito actual é de uma depressão profunda e calma. Estou há dias, ao nível do Livro do Desassossego." (carta a Armando Côrtes-Rodrigues, Lisboa, 14 de Outubro de 1914) (PESSOA, 1986: 91). E este tipo de leitura é condição para que o leitor se detenha a dada altura, atraído pelos textos, num ou mais fragmentos. É então que os lê por inteiro. 4. Manuscritos Maria Augusta Babo descreve os fragmentos, ainda na condição de manuscritos, de um modo que neles já há a possibilidade latente de intervalos na sua construção e no próprio suporte da escrita (o papel como superfície de inscrição). Quer dizer, a dispersão intrínseca que por vezes lhes é inerente; enfim, como assinalámos acima (parte 1), fragmentos e intervalos nos próprios fragmentos. É no capítulo intitulado "O Livro do Desassossego, uma escrita sobre a escrita", em A Escrita do Livro: […] escritos por todo o lado e em todos os sentidos, alguns bocados de papel, porque de bocados de papel se trata, formam desenhos rendados onde as palavras se sucedem, se sobrepõem, se encavalitam, ou se tornam ilhas minúsculas e negras, na brancura amarelecida do suporte. Estes enunciam antes o vazio, a incompletude frequente da própria frase. Folhear assim quinhentas páginas soltas é percorrer um enigma, é entrar no labirinto misterioso e infinito que nenhuma edição poderá nunca apagar ou colmatar. (BABO, 1993: 156) Manuscrito — Arquivo do LdoD — https://ldod.uc.pt/fragments E ainda: Le texte qui forme le L.D. ne participe, d'aucune façon, à l'état organisé que le poète voulait lui conférer. Ce texte est, au contraire, disparate. La plupart des fragments sont restés manuscrits et beaucoup d'entre eux portent un assez grand nombre de corrections et ne sont pas dés. Ils relèvent d'un état de préparation, de germination, qui n'a pas eu de suite. On doit envisager ce texte plutôt en tant qu'engendrement textuel qu'en tant que produit achevé. (BABO, 2011: 69) O texto que forma o L.D. não participa, de modo algum, do estado organizado que o poeta lhe queria conferir. Este texto é, pelo contrário díspar. A maior parte dos fragmentos permaneceram manuscritos e muitos de entre eles trazem um grande número de correcções e não são dados. Fazem parte de um estado de preparação que não teve seguimento. Devemos antes encarar este texto enquanto engendramento textual e não como produto acabado. Enquanto escrita da "personagem-autor" ou simplesmente da "personagem" Bernardo Soares, segundo Silvina Rodrigues Lopes, não há uma ordem ou organização inicial, tanto nos manuscritos como nos dactiloscritos ("Esta não se separa das fontes da desordem"): "a escrita testemunha um tipo de complexidade que a torna incurável, insuscetível de ordenação." Trata-se de "uma acumulação de fragmentos, sem ordem nem soma": A observação da vida urbana dá-se em fragmentos, paisagens em que a personagem-autor se inscreve, se implica: "desenrolo-me na alma desatenta esta paisagem de abdicações, inconsequências[…] tudo se emaranha" ([frg.] 204). […] Em rutura com a vontade de poder, que pretende ter um fundamento unificador fora da realidade, da sua permanente mudança, a escrita testemunha um tipo de complexidade que a torna incurável, insuscetível de ordenação. Esta não se separa das fontes da desordem, a primeira das quais é o inútil, posto em destaque como qualificação do livro — "páginas inúteis, lixo e desvio" ([frg.] 303). Sendo composto por uma acumulação de fragmentos, sem ordem nem soma, o Livro do Desassossego é escrito em contraste com o Caixa e o Razão, livros que a personagem Bernardo Soares tem em cima da secretária, idênticos àqueles que qualquer um poderia utilizar para registar os resultados sintetizáveis em "deve", "haver" e "balanço". (LOPES, 2021: 4–5) [texto em Word enviado pela autora] Mas não esqueçamos que há os fragmentos da/enquanto escrita e os fragmentos da/enquanto leitura. Importa ter em conta o ponto como lugar de intersecção entre estes dois planos. É aqui que poderemos entrever, talvez, a ponte entre a desordem e a ordem do Livro do Desassossego. Questões a que o inquérito deste ensaio tenta responder. * O seguinte passo, menos falado, de uma carta de Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues, parece ser eloquente sobre o parcelamento de alguns fragmentos por concluir; dir-se-ia, novamente, fragmentos de fragmentos em manuscritos: "Nem lhe mando outras pequenas cousas que tenho escrito nestes dias. Não são muito dignas de serem mandadas, umas; outras estão incompletas; o resto tem sido quebrados e desconexos pedaços do Livro do Desassossego." Lisboa, 14 de Outubro de 1914 (PESSOA, 1986: 89). "Quebrados e desconexos pedaços". Nesta redundância ou força de expressão, é como se os próprios pedaços estivessem por sua vez quebrados: cacos de cacos. Ou seja, os tais intervalos nos próprios fragmentos, fragmentos nos fragmentos, etc. "Se Fernando Pessoa — escreve José Martinho — nunca terminou o Livro do Desassossego, foi também porque precisava de reler sempre as páginas que ia escrevendo, para cuidar delas como se fossem as suas crianças." (MARTINHO, 2020: 325). E a interessante leitura de Richard Zenith, na introdução ao Livro do Desassossego, parecendo considerar que no Livro, a forma e o fundo se reflectem. Isto é, como se o aparente produto acabado, a forma — que, todavia, vai ganhando novas formas, editoriais, por exemplo — estivesse em consonância com o próprio processo de construção, ou seja, o fundo, por princípio sempre prévio ao acabamento ("la forme et le fond se reflectem perfeitamente"). E porque, como diz Soares, "A unica arte verdadeira é a da construcção." (PESSOA, 2014: 153): E Pessoa deixou-o andar, rabiscando o L. do D. à cabeça dos mais diversos textos, às vezes posteriormente, ou com um ponto de interrogação exprimindo dúvida. O Livro do Desassossego — sempre provisório, indefinido e em transição — é uma daquelas raras obras onde la forme e le fond se reflectem perfeitamente. Sempre com a intenção de rever e organizar os fragmentos, mas sem coragem ou paciência para enfrentar a tarefa. Pessoa foi acrescentando material, e os parâmetros da obra amorfa dilatavam-se. (PESSOA, 2011: 19) Judith Balso refere-se ao processo e génese já sem ordem do Livro e "das visões desse sonhador": La loi de développement du livre est celle de l'émergence, nécessairement privée d'ordre, des visions de ce rêveur. Les morceaux que les éditions du livre ont appelés « fragments » commencent sur une vision et s'achèvent lorsque la pensée que cette vision portait s'épuise. ("Qu'est-ce que le rêveur ' voit '?" do capítulo "L'énigme de la semi-hétéronymie", BALSO, 2006a: 20) A lei do desenvolvimento do livro é a da emergência, necessariamente privada de ordem, das visões desse sonhador. As peças que as edições do livro chamaram "fragmentos" começam por uma visão e acabam logo que o pensamento que essa visão carregava se esgota. (BALSO, 2006b: 22) Fotografia recolhida da Fotobiografia de Pessoa, por Richard Zenith. "Monossilabicamente / eis Pessoa / irmão da unidade / disperso e fecundo em gente vária / eterna litania / dos cafés pacíficos de Lisboa…" Manoel Tavares Rodrigues-Leal — poema de 1986 5. Poema e prosa Judith Balso, não deixando de considerar "a singularidade da prosa de Soares" (Balso, 2006b: 24), oscila entre o carácter "acabado ou inacabável" do fragmento, focando o seu "fechamento como poema em prosa que ele é". Todavia, alude ao sonho como possibilidade de aberturas que perpassam inevitavelmente os fragmentos: L'inachèvement du livre ne constitue nullement un trait extrinsèque. […] C'est de façon essentielle que ce livre existe sur un mode discontinu : il ne peut se développer que dans la multiplication sans ordre ni lien de ses parties. Chaque « fragment » possède une loi de composition qui lui est propre. Tout « fragment » est ou achevé, ou en lui-même inachevable, dans tous les cas clos sur lui-même, comme le poème en prose qu'il est. Peut-on vraiment nommer " fragment " ce qui possède une si parfaite unité interne ? ("Écrit à échelle de la vision" do mesmo capítulo acima, BALSO, 2006a: 23) O inacabamento do livro não constitui de todo um traço extrínseco. […] É de modo essencial que este livro existe por um modo descontínuo: ele só se pode desenvolver na multiplicação sem ordem nem laço das suas partes. Cada 'fragmento' é ou acabado ou em si mesmo inacabável, em qualquer dos casos fechado sobre si mesmo, como o poema em prosa que ele é. Poderemos verdadeiramente designar 'fragmento' o que possui uma tão perfeita unidade interna? (BALSO, 2006b: 25–26) 6. Sonhos Retomemos Judith Balso. Logo no seguimento da citação acima, Balso aborda o sonho como se este conferisse existência ao livro abrindo vasos comunicantes naquele descontínuo: "O que dá existência a este livro não são senão as ocorrências que conduzem e prescrevem o sonho. Ele acolhe por conseguinte variantes e continuações ao mesmo tempo que é aberto aos desvios mais extremos" (BALSO, 2006b: 25–26) (itálicos nossos). Eduardo Lourenço refere também a dimensão dos sonhos, numa reflexão que corresponde, de algum modo, com a de Judith Balso. Pois os sonhos, ou "meio-sonhos sem par" — possível cruzamento do real e do imaginário –, parecem também deambular, fazendo uma travessia dos textos e abrindo-os: "Porque eu conheci o Livro do Desassossego, como toda a gente, meio organizado. É um livro feito por bocados, peças. Um livro que eu próprio não consigo organizar. Vou-me demorando naqueles meio-sonhos sem par." (LOURENÇO e TAVARES, 2016: 30–31). 7. A leitura Mas o que quer dizer, mais precisamente, Eduardo Lourenço com: "Um livro que eu próprio não consigo organizar"? Certamente refere-se ao começo e ao fim, tendo um decurso pelo meio. E que decurso? Não consegue dar-lhe um começo nem um fim. Observação fulgurante. Se não sabe por onde começar, nem por onde acabar, então, poderá começar em qualquer ponto, tal como terminar em qualquer ponto! E o decurso poderá ser um qualquer. Não será isto evidente? Não irá de algum modo ao encontro do que se pretende aqui mostrar? Lourenço diz que não consegue organizar o Livro. Mas abre assim caminho, lendo-o, para múltiplas deambulações livres de leitura; talvez múltiplas e virtuais organizações (é a tal articulação entre caos e cosmos (ver parte 2 — Caos): "Vou-me demorando naqueles meio-sonhos sem par." O seguinte passo de Augusta Babo não ecoará, de algum modo, a citação de Lourenço? "Livre sans début ni fin, chacun étant libre de le commencer et de l'achever, ou de l'assembler selon sa volonté" (BABO, 2011: 42). * Fernando Pessoa — Pincel e tinta da china em papel Ingres Vidalon — 2010 — © desenho de Luís de Barreiros Tavares. Colecção do autor. Bibliografia PESSOA, Fernando (1986). Escritos Íntimos, cartas e páginas autobiográficas. Introduções, organização e notas de António Quadros. Lisboa: Europa-América. PESSOA, Fernando (2011). Livro do Desassossego — Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim. 9ª edição. PESSOA, Fernando (2014). Livro do Desassossego. Ed. de Jerónimo Pizarro. Lisboa: Tinta-da-china. 2ª ed. * BABO, Maria Augusta [Pérez] (1993). A Escrita do Livro. Lisboa: Vega, col. Passagens. BABO, Maria Augusta Pérez (2011). La Traversée de la Langue — Sur le Livre de l'Intranquillité de Fernando Pessoa. Covilhã: LabCom Books. BALSO, Judith (2006a). Pessoa, le Passeur Métaphysique. Paris: Seuil, col. L'Ordre Philosophique. BALSO, Judith (2006b). Pessoa, Entre a Terra Nula e o Céu que não Existe . Lisboa: Instituto Piaget. [tradução de Pessoa, le Passeur Métaphysique]. FERREIRA, A. Gomes (s/d). Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora. GIL, José (2013). Cansaço, Tédio, Desassossego. Lisboa: Relógio D'Água. 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quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023
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